CAPÍTULO 9
V. 1 -
Dizia-lhes ainda: Em verdade vos afirmo que, dos que aqui se encontram,
alguns há que, de maneira nenhuma
passarão pela morte
até que vejam ter chegado com poder o
reino de Deus.
Estes dias do ministério de Jesus são dias de grandes mudanças. Ele passa
a dar novos ensinos que consistem dos seus sofrimentos, da sua morte, da sua ressurreição, da segunda vinda e da
chegada do reino de Deus com poder. Além disso ele passa a evitar as multidões
e a dedicar-se especialmente ao ensino dos discípulos em particular.
Esta dedicação específica de Jesus aos doze era realmente muito
necessária para levá-los a uma compreensão ainda maior da sua pessoa e da sua
missão. Eles estavam sendo instruídos a respeito dos futuros acontecimentos da
vida do Mestre, e mostravam dificuldade em aceitá-los. Como iriam então aceitar
esses fatos na sua própria vida apostólica? A cruz ocupa lugar prioritário na
vida do discípulo. Ela significa abraçar a causa do próprio Cristo para, só
depois, seguir os seus passos. Isto implica em renúncia. Ele renunciou a tudo
que lhe foi proposto nos dias da sua tentação no deserto, e prosseguiu dia a
dia submetendo-se ao propósito de Deus. Esta renúncia inclui as cousas do
mundo, as riquezas, o desejo de domínio e de poder, as glórias humanas, a
satisfação de prazeres sensuais e também os hábitos pessoais da vida que cada
um gosta de viver à sua própria maneira. A vida do homem é a expressão exterior
da sua alma. É a resultante da vontade de satisfazer às suas paixões. Por isso,
para salvar a alma, é imperioso mudar de vida. Não vale a pena aceitar o mundo
com tudo o que ele possa oferecer para agradar-se a si mesmo e, com isso,
perder a alma, pois ela vale mais do que o mundo inteiro. É urgente deixar de
viver o tipo de vida egoísta e de auto-satisfação das paixões da carne, e viver
para Cristo e para o evangelho. Só assim é possível salvar a alma.
Pedro precisava aprender isto, bem como os outros discípulos e toda a
multidão que Jesus convocou naquele momento para ouvi-lo. A repreensão a Pedro
foi oportuna para que mais tarde eles não viessem a envergonhar-se de Cristo e
da sua palavra, pois, proceder desta
maneira resulta em ser rejeitado, quando ele vier na glória de seu Pai com os
santos anjos. Eles precisavam saber também que o reino de Deus chegaria com
poder, antes que alguns dos que se encontravam presentes ali vissem a morte.
De fato, pouco tempo depois, quando Pentecoste chegou com poder marcando
a vinda do reino de Deus, onze dos apóstolos e certamente muitos daquela
multidão estavam vivos. Um dos discípulos havia-se escandalizado e caminhou
para o suicídio. Mas os outros saíram por todo o mundo, fazendo novos
discípulos e testemunhando sem se envergonhar do Mestre, apesar dos sofrimentos
por que passaram. Pedro, segundo informações históricas, seguiu as pegadas de
Cristo, tendo encontrado a morte numa cruz, crucificado de cabeça para baixo.
V. 2 - Seis dias depois, tomou Jesus consigo a Pedro, Tiago e João
e levou-os sós, à parte, a um alto
monte. Foi transfigurado diante deles:
V. 3 - as
suas vestes tornaram-se resplandecentes e sobremodo brancas ,
como nenhum lavandeiro na terra as
poderia alvejar.
V. 4 -
Apareceu-lhes Elias com Moisés e estavam falando com Jesus.
V. 5 -
Então Pedro, tomando a palavra, disse: Mestre, bom é estarmos aqui
e que façamos três tendas; uma será
tua, outra para Moisés e outra para Elias.
V.6 - Pois
não sabia o que dizer, por estarem eles aterrados.
V.7 - A
seguir, veio uma nuvem que os encobriu; e dela uma voz dizia:
Este é o meu Filho Amado; a ele ouvi.
V. 8- E,
de relance, olhando ao redor, a ninguém mais viram com eles,
senão somente a Jesus.
Os discípulos já haviam chegado á compreensão de que Jesus realmente é o
Messias. Mas ainda faltava muito para eles comungarem perfeitamente com o
pensamento do Mestre a respeito da sua obra messiânica. Os novos ensinos
trazidos nesta fase por Jesus sobre a sua morte, a cruz na vida dos discípulos
e a vinda do reino de Deus com poder, têm a finalidade de prepará-los para
aceitar estas verdades que dentro em pouco se tornariam realidade na vida do
Mestre e deles também. O episódio da transfiguração foi de grande importância
no desenvolvimento do modo de pensar dos apóstolos, e estabelece um elo de
ligação entre os ensinos que eles receberam desde que Jesus começou a falar da
necessidade da sua morte no capítulo 8, verso 31, até o final do capítulo 10,
período em que ele trata muito diretamente com aqueles doze discípulos.
Quando Marcos indica o período de seis dias decorridos entre a confissão
de Pedro e a transfiguração, o que ele realmente quer é mostrar a relação entre
esses dois fatos: A transfiguração representa uma extraordinária revelação que
os discípulos só poderiam receber depois de saber que Jesus é o Messias.
A razão por que Jesus levou consigo somente a Pedro, Tiago e João para o
monte não é esclarecida. Sabemos que eles eram os que andavam mais próximos do
Mestre e contudo tinham dificuldade de compreender a sua missão. Pedro quis
convencê-lo de não ir a Jerusalém para morrer. Tiago e João sonhavam com um
reino neste mundo em que eles pudessem ser os principais ministros do Messias
(cf. Marcos 10:35-37). Quanto ao monte em que aconteceram os fatos, hoje
ninguém pode dizer com certeza qual é.
A transfiguração foi uma transformação que os discípulos observaram no
aspecto de Jesus. As suas vestes tornaram-se extremamente brilhantes. Não era
luz refletida, vinda de outra fonte luminosa. Era um brilho esplendente que
emanava dele mesmo. A cor branca das suas vestes é descrita como algo que o homem
não é capaz de produzir, tão grande era a pureza que apresentavam. E o seu
rosto também se transformou. Jesus deu ali uma demonstração da sua glória
eterna, glória que ele já possuía antes da encarnação.
Dois personagens considerados os maiores vultos na história da revelação
de Deus a Israel apareceram falando com ele. O primeiro mencionado é Elias,
grande profeta e símbolo da profecia, através de quem a fé em Jeová foi
restaurada numa época de profunda crise espiritual da nação. O segundo, Moisés,
foi o grande legislador que recebeu a Lei no Monte Sinai e que conduziu o povo
na grande vitória do êxodo. Os dois juntos representam tudo o que foi dito no
passado a respeito da vinda do Messias. E agora os discípulos que, como todo
judeu, os conheciam desta maneira, presenciam a sua conversa com Jesus. O que
eles falavam não se encontra registrado no Evangelho de Marcos, mas Lucas
informa que era a respeito da partida de Jesus que estava para cumprir-se em
Jerusalém (cf. Lucas 9:30-31).
A palavra “partida” usada por
Lucas no original é “êxodo”. Então eles falavam do êxodo que Jesus estava para
cumprir. Êxodo foi a gloriosa vitória de livramento do povo de Deus da
escravidão do Egito, que representa o mundo do pecado. Mas a partida de Jesus é
também a sua morte. Portanto é na morte que o Messias alcança a grande vitória
dentro do propósito de Deus, de retirar o seu povo da escravidão do pecado. É
isto que estava anunciado na Lei e nos profetas representados aqui por Moisés e
Elias . É isto também que os discípulos deviam compreender sobre a morte de
Jesus: A vitória sobre o pecado para todo o povo de Deus.
Se os discípulos não podiam compreender tudo isto agora, é porque a
educação que eles receberam estava de acordo com as concepções tradicionais dos
judeus, bem diferentes das verdades que Jesus vinha ensinando a eles. Embora
não pudessem compreender tudo agora, esta iniciação era necessária para que
mais tarde eles pudessem interpretar corretamente a cruz e saber que a vitória de Cristo está
na morte e a sua coroa e glória estão na cruz.
Pedro, no momento, tomando a palavra como fizera na confissão na semana
anterior, sugere ao Mestre que seria bom parar por ali mesmo, onde contemplaram
a glória de Deus, aquela mesma glória que resplandeceu no deserto, no Tabernáculo,
enfim, em várias e memoráveis ocasiões da história de Israel. Se construíssem
ali uma tenda para Jesus, outra para Moisés e outra para Elias, tudo estaria
bem, e não haveria necessidade de prosseguir até à morte. Mas ele estava
aterrado diante daquela visão, como também os outros dois, e não sabia o que
estava dizendo. Realmente ele não discernia que a glória de Deus estava
habitando entre os homens, ali mesmo na presença deles, no corpo de Jesus. Ele
é o tabernáculo de Deus com os homens (cf. João 1:14). Por isso a voz veio em
socorro, saindo da nuvem que os envolvia, a mesma nuvem que apareceu ao povo de
Israel no deserto durante o êxodo, como manifestação da presença de Deus. Era
fácil ver estas cousas no passado. Difícil era relacionar com Jesus tudo o que
estava acontecendo no presente. Felizmente eles conheciam a tradição rabínica,
segundo a qual o Messias viria numa nuvem. Pois ali estava a nuvem e Deus mesmo
falando de dentro dela: “Este é o meu filho amado, a ele ouvi”.
Em outras palavras: “Este é o Messias, ouçam o que ele ensina”. Ele
ensinava o que constava sobre ele na lei e nos profetas, e que isto era
necessário acontecer.
Embora não compreendendo tudo, os discípulos consideraram o que ouviram,
obedeceram e seguiram adiante com o Mestre.
V. 9 - Ao descerem do monte,
ordenou-lhes Jesus
que não divulgassem as cousas que
tinham visto, até ao dia
quando o Filho do homem
ressuscitasse dentre os mortos.
V.10 -
Eles guardaram a recomendação, perguntando uns aos outros
que seria o ressuscitar dentre os
mortos.
V.11 - E
interrogaram-no, dizendo: Por que dizem os escribas
ser necessário que Elias venha
primeiro?
V.12 -
Então ele lhes disse: Elias vindo primeiro, restaura todas as cousas;
como, pois, está escrito sobre o Filho do
homem
que sofresse muito e fosse aviltado?
V.13 - Eu,
porém, vos digo que Elias já veio, e fizeram com ele
tudo o que quiseram, como a seu
respeito está escrito.
Os discípulos não tinham condições de interpretar corretamente os fatos
que observaram no monte da transfiguração. Este é o motivo da recomendação de
Jesus para que não relatassem o que viram, senão depois que ele ressuscitasse
dentre os mortos. E eles guardaram silêncio.
A ressurreição era outra questão com a qual eles não atinavam. Embora
tivessem presenciado a ressurreição do filho da viúva de Naim (Lucas 7:11-17) e
da filha de Jairo, eles não conseguiam relacionar os poderes do reino com a
obra messiânica ou com a ressurreição do Messias. Mas em Pentecoste, quando o
Espírito Santo foi derramado, Pedro foi o primeiro a provar dos poderes do
reino. E, cerca de trinta anos depois de terem ocorrido os fatos no monte da
transfiguração, ele escreve na sua primeira carta:
“Bendito o Deus e Pai de Nosso Senhor Jesus Cristo que, segundo
a sua
muita misericórdia,
nos regenerou para uma viva esperança,mediante
a ressurreição de
Jesus Cristo dentre os mortos” (1Pedro 1:3).
Através da
ressurreição de Jesus, Deus também provou que ele é o seu Filho (cf. Romanos
1:4).
Mas ainda há um ponto de suma importância neste parágrafo, para concluir
os ensinos de Jesus sobre o seu sofrimento e morte, bem como a relação disto
com a vida dos discípulos. Seguindo uma tradição rabínica que falava da vinda
do Messias precedida por Elias, eles perguntaram a Jesus: “Por que dizem os
escribas ser necessário que Elias venha primeiro? Certamente esta tradição
era baseada na profecia de Malaquias 4:5-6, que se cumpriu em João Batista (cf.
Mateus 17:13). Então Jesus esclareceu que ele veio realmente, conforme estava
escrito a seu respeito, mas não foi reconhecido como tal. Antes, sofreu nas
mãos de Herodes, primeiro a prisão, depois a morte por instigação de Hrodias. Assim,
fizeram dele o que quiseram (Mateus 17:12-13). E agora vem a lição que os
discípulos precisavam gravar: Se o precursor do Messias sofreu todas estas
cousas, muito mais haveria de sofrer ele próprio, e, depois dele, os seus
apóstolos!
Mas foi somente após a ressurreição que eles receberam discernimento
espiritual suficiente para compreender todas estas cousas.
V.14 -
Quando eles se aproximaram dos discípulos,
viram numerosa multidão ao redor,
e que os escribas discutiam com eles.
V.15 - E
logo toda a multidão ao ver Jesus, tomada de surpresa,
correu para ele, e o saudava.
V.16 -
Então ele interpelou os escribas: Que é que discutíeis com eles?
V.17 - E
um, dentre a multidão, respondeu:
Mestre, trouxe-te o meu filho,
possesso de um espírito mudo;
V.18 - e
este, onde quer que o apanha, lança-o por terra
e ele espuma, rilha os dentes e vai
definhando.
Roguei a teus discípulos que o
expelissem, e eles não puderam.
V.19 -
Então Jesus lhes disse: Ó geração incrédula!
até quando
estarei convosco? até quando vos
sofrerei? Trazei-mo.
V.20 - E
trouxeram-no; quando ele viu a Jesus,
o espírito imediatamente o atirou
com violência, e,
caindo ele por terra, revolvia-se
espumando.
V.21 -
Perguntou Jesus ao pai do menino: Há quanto tempo
isto lhe sucede? Desde a infância,
respondeu;
V.22 - e
muitas vezes o tem lançado no fogo e na água, para o matar;
mas, se tu podes alguma cousa, tem
compaixão de nós, e ajuda-nos.
V.23 - Ao
que respondeu Jesus: Se podes! tudo é possível ao que crê.
V.24 - E
imediatamente o pai do menino exclamou [com lágrimas]:
Eu creio, ajuda-me na minha falta de
fé.
V.25 -
Vendo Jesus que a multidão concorria, repreendeu o espírito imundo
dizendo-lhe: Espírito mudo e surdo,
eu te ordeno:
Sai deste jovem e nunca mais tornes
a ele.
V.26 - E
ele, clamando, agitando-o muito, saiu, deixando-o
como se estivesse morto, ao ponto de
muitos dizerem: Morreu.
V.27 - Mas
Jesus, tomando-o pela mão, o ergueu, e ele se levantou.
V.28 -
Quando entrou em casa, os seu discípulos lhe perguntaram em particular:
Por que não pudemos nós expulsá-lo?
V.29 -
Respondeu-lhes: Esta casta não pode sair, senão por meio de oração [e jejum].
Apesar de tudo o que aconteceu com o menino neste episódio, o que mais
impressiona são as palavras de Jesus quando diz: “Ó geração incrédula! até
quando estarei convosco? até quando vos sofrerei?”. O Mestre já tinha feito
o bastante para que os discípulos o compreendessem e também para que aceitassem
a missão deles. Sem fé seria impossível ajudar a humanidade. Mas estava difícil
para eles assumirem as dificuldades envolvidas na carreira que deviam abraçar.
Eles não estavam conscientes de que precisavam entregar as suas vidas a favor
de um mundo em reboliço como aquele que se encontrava ao pé do morro. Pedro
gostaria de ter ficado lá em cima, onde vira a glória do Messias, onde tudo
estava tão bom. Ele não entendia que a verdadeira glória consiste em descer das
alturas em que se encontravam, para ir de encontro às necessidades humanas,
como Deus quer, como o próprio Messias deixou a glória celeste para servir ao
homem na Terra. A repreensão de Jesus tinha o objetivo de acordá-los para a
vida real. Pois havia mais um fator, agora posta às claras, que os deixava
incapazes de assumir as suas responsabilidades. Era a negligência na oração. Em
outras ocasiões, eles tinham exercido autoridade sobre os demônios, mas agora
não puderam expelir o espírito imundo do menino.
A censura de Jesus não se limitava aos discípulos. Ali estava presente
toda uma geração representada pela multidão espectadora, pelos escribas
voluntariamente incrédulos, pelo pai do menino confessando a sua falta de fé, e
ainda pelo menino impossibilitado de crer, porque era dominado pelo inimigo.
Jesus não tolera incredulidade. Por isso ele questiona: Até quando iria
suportar homens como esses? até quando o seu ministério seria dedicado a uma
geração incrédula como essa?
A falta de fé dos discípulos acabou criando uma situação embaraçosa para
eles mesmos, pois os escribas se aproveitaram do caso, envolvendo-os numa
discussão que pretendia abalar o prestígio tanto deles como o do Mestre. Foi
criado um clima de expectação tal em torno dos fatos que nem mesmo perceberam
que Jesus vinha-se aproximando. E quando de repente o viram, correram para ele surpresos e o
saudavam.
Chegando, Jesus interrogou os escribas sobre o que discutiam e, assim,
chamou para si a atenção de todos, pois eles deviam estar massacrando com seus
olhares os nove discípulos embaraçados. Se os escribas responderam a pergunta
do Mestre, Marcos não informa. Talvez o mais importante fosse o apelo
desesperado do pai do menino. Seu filho único estava em sua companhia naquele
mundo turbulento ao pé do monte da transfiguração e os discípulos não puderam
expelir o espírito imundo de que estava possesso, porque não tinham força. Agora ele o trazia à
presença do Filho Unigênito de Deus que lá em cima, no monte, mostrou a glória
que o acompanhava, para manifestar a presença de Deus entre os homens, no seu
ministério. E, descendo do monte, ele podia acalmar o desespero daquele pai que
nada sabia da transfiguração. Mas diante daquela falta de fé geral, tão
evidente, o Mestre não podia deixar de fazer severa repreensão, como fez. Em certo aspecto ela
lembra a censura de Deus ao povo no deserto quando disse: “Durante quarenta
anos estive desgostoso com esta geração,...por isso jurei na minha ira: Não
entrarão no meu descanso” (Salmo 95:10-11). O problema geral da
incredulidade ficou bem definido e localizado ali nos vários tipos de pessoas
que representavam aquela geração incrédula: Nos escribas, nos discípulos, no
pai do menino, e na multidão curiosa. E as palavras de repreensão de Jesus
foram muito cheias de significado. Aquela geração ali presente sofreu severo
julgamento de Deus por ter ignorado o Messias. Quando Jerusalém foi
terrivelmente destruída pelos romanos no ano 70 da nossa era, poucos deles
sobreviveram.
Depois de relatar tudo o que acontecia com o filho desde a infância, o
pai roga desesperado: “...se tu podes alguma cousa, tem compaixão de nós, e
ajuda-nos”. Se aquele pai fosse um homem de fé, ele não imporia restrições
ao poder de Deus, dizendo:
“... se
tu podes alguma cousa”. Do ponto de vista de Jesus, seria justo ter
compaixão e ajudar num caso como este? O espírito imundo maltratava o jovem
atirando-o no chão, na água, no fogo, provocando-lhe convulsões, e fazendo-o
rilhar os dentes. Sim, ele tem compaixão e ajuda, por ser muito sensível em
casos como este. Por isso disse ao pai do menino: “...tudo é possível ao que
crê”. Então ele, reconhecendo com lágrimas a sua responsabilidade no caso,
tomou uma atitude diante da palavra do Mestre, e confessou: “Eu creio,
ajuda-me na minha falta de fé”. Neste caso não foi levada em conta a
pobreza da fé daquele homem, mas a riqueza da graça do Filho de Deus. Por isso ele curou o jovem. E antes que
o povo tumultuasse aquela aglomeração, ele ordenou que o espírito mudo e surdo
saísse do menino e que nunca mais voltasse para ele. Assim Jesus resolveu com
habilidade aquela situação, atendendo ao pai desesperado, devolvendo-lhe o
filho curado, fazendo calar os escribas, e controlando a multidão.
Tratando-se aqui de um espírito mudo, ele não podia expressar-se por meio
de palavras e confessar quem é Jesus. Mas, ao vê-lo, agitou o menino com
violência, jogando-o por terra em convulsão. Ao receber a ordem para sair,
agitou-o novamente e o deixou, como se estivesse morto. Esta é a fúria inútil
dos demônios diante da autoridade de quem eles reconhecem ser o Senhor.
Em casa Jesus explicou aos discípulos que a causa do insucesso deles era
a falta de oração. Não da oração esporádica ou no ato do exorcismo. A verdade é
que os discípulos necessitam de manter comunhão constante com Deus por este meio, porque a oração é a
fonte de poder para o ministério. Isto também eles não haviam compreendido. Os
nove que ficaram ao pé do monte deram prova de que não oravam o suficiente. Os
três que subiram com Jesus estavam premidos de sono enquanto o Mestre orava
(cf. Lucas 9:32). E no Getsêmani, foram surpreendidos três vezes dormindo
(Marcos14:37-41).
Mas depois da ressurreição, quando Jesus já havia subido ao céu, eles
estavam transformados. Antes da chegada do Espírito Santo em Pentecoste, os
onze perseveravam unânimes em oração no cenáculo.
V.30 - E,
tendo partido dali, passavam pela Galiléia,
e não queria que alguém o soubesse;
V.31 -
porque ensinava os seus discípulos e lhes dizia:
O Filho do homem será entregue nas
mãos dos homens, e o matarão;
mas, três dias depois da sua morte,
ressuscitará.
V.32 -
Eles, contudo, não entendiam isto, e temiam interrogá-lo.
Neste parágrafo Marcos mostra que Jesus
está reforçando mais uma vez os ensinos sobre o seu sofrimento, morte e
ressurreição. Diante destas palavras do Mestre os discípulos sentiam-se
temerosos, porque isto que agora ouviam era bem diferente do que haviam
aprendido sobre o Messias, de acordo com as tradições rabínicas e as opiniões
populares da época. Apesar de que eles já haviam aceitado muitas cousas, ainda
deviam aceitar outras que agrediam os seus conceitos. Por isso era melhor não
perguntar nada.
V.33 -
Tendo eles partido para Cafarnaum, estando ele em casa,
interrogou os discípulos: De que é
que discorríeis pelo caminho?
V.34 - Mas
eles guardaram silêncio; porque pelo caminho
haviam discutido entre si qual era o
maior.
V.35 - E
ele, assentando-se, chamou os doze e lhes disse:
Se alguém quer ser o primeiro, será
o último e servo de todos.
V.36 -
Trazendo uma criança, colocou-a no meio deles e,
tomando-a nos braços, disse-lhes:
V.37 -
Qualquer que receber uma criança, tal como esta, em meu nome, a mim me recebe;
e qualquer que a mim me receber, não
recebe a mim, mas ao que me enviou.
Se Jesus teve que prevenir os discípulos mais uma vez para mudar o
conceito deles sobre os seus sofrimentos e a sua morte, ele teve que
repreendê-los também mais uma vez, para mudar as suas atitudes incorretas. A
gravidade do problema de ambição pessoal manifestado entre eles provocou mais
esta forte censura do Mestre.
Por causa da relevância do assunto, este acontecimento é considerado um
dos pontos mais altos da narrativa de Marcos.
Enquanto no caminho para Cafarnaum Jesus andava na frente dos discípulos,
meditando no ideal de chegar à cruz, cumprindo cabalmente o seu ministério, os
doze iam atrás, discutindo qual deles seria o mais importante no reino messiânico
que imaginavam governar no futuro. Quem sabe se Pedro, Tiago e João não
mostravam ares de superioridade em face das revelações que receberam no monte
da transfiguração? Em casa, já em Cafarnaum, foram interrogados pelo Mestre
sobre a discussão no caminho. Então silenciaram, porque sabiam que estavam
errados. Não havia consistência naquela atitude. Agora, envergonhados,
preferiam não voltar ao assunto. O que entre eles era uma questão relevante,
diante do Mestre não encontrava nenhuma justificativa. Sabendo o que se passava
no coração dos discípulos, Jesus podia tê-los repreendido no caminho, mas
preferiu deixar para uma hora mais reservada. Na intimidade da casa, para falar
com seriedade, tomou a postura de um
mestre, assentando-se, e convocou
os doze. O momento era crítico porque o discipulado já estava adiantado, mas
eles conservavam no coração muitas impurezas que precisavam ser retiradas.
Então lhes deu o ensino incisivo: “Se alguém quer ser o primeiro, será o
último e servo de todos”. O primeiro lugar é o daquele que está servindo a
todos e abaixo de todos. No reino de Cristo o
lema é trabalhar a favor dos outros, ao invés de promover-se pelo
trabalho de outros. Portanto não há lugar para sentimentos egoístas que levam
as pessoas a usarem o próximo para satisfazerem as suas ambições pessoais.
Antes, a ambição de dominar é substituída pela satisfação de servir.
Para ilustrar este ensino, Jesus encenou uma parábola. Trouxe uma criança
para o meio deles para que todos a vissem e tomou-a nos braços. Então disse: “Qualquer
que receber uma criança, tal como esta, em meu nome, a mim me recebe; e
qualquer que a mim me receber, não recebe a mim, mas ao que me enviou”. O
motivo de Jesus ter tomado uma criança como exemplo é que a criança precisa de
ser servida, uma vez que ainda não é capaz de fazer nada. Outros têm que fazer
tudo por ela. Lembrando que no reino de Deus todos entram na condição de
crianças, todos necessitam dos cuidados daquele que lá se encontram, até
crescerem e amadurecerem. Na condição de Servo de Deus, Jesus dispensou a todos
o tratamento de que convinha a cada um, com carinho e especial atenção. Como
Mestre, ensinou. As multidões alimentou. Os enfermos curou. Os endemoninhados
libertou. Os discípulos carregou. O princípio de serviço no reino de Deus é
“servir” e, não, “ser servido”. É com este espírito que os discípulos devem
receber o reino e a Cristo, pois desta maneira estarão recebendo o próprio Deus
que enviou seu Filho para estabelecer o reino. Receber a Cristo e seus ensinos
implica em humildade e disposição para obedecer e para servir, como quem atende
a uma criança. Mas há uma interação entre Deus e o homem que se propõe a
aprender de Cristo. Jesus explica isto quando diz: “...E serão todos
ensinados por Deus. Portanto, todo aquele que da parte do Pai tem ouvido e
aprendido, esse vem a mim” (João 6:45). Tal homem alcança uma situação de
segurança total segundo a sua promessa: “Todo aquele que o Pai me dá, esse
virá a mim; e o que vem a mim, de modo nenhum o lançarei fora” (João 6:37).
V.38 -
Disse-lhe João: Mestre, vimos um homem que em teu nome expelia demônios,
o qual não nos segue; e nós lho
proibimos, porque não seguia conosco.
V.39 - Mas
Jesus respondeu: Não lho proibais; porque ninguém há que faça milagre
em meu nome e logo a seguir possa falar mal de
mim.
V. 40 -
Pois quem não é contra nós, é por nós.
V. 41 -
Portanto, aquele que vos der de beber um copo de água em meu nome, porque sois
de Cristo, em verdade vos digo que de modo algum perderá o seu
galardão.
Ao ouvir os ensinos sobre a maneira de receber os pequenos discípulos no
reino de Deus que Jesus ilustrou com aquela criança, João lembrou-se de um fato
que acabara de se passar com ele e com outros discípulos, e agora o confessa
diante do Senhor, porque lhe pesava na consciência. Este mesmo discípulo que
estava disposto a destruir uma aldeia samaritana com fogo do céu, relata agora
que haviam proibido um homem de expelir demônios em nome de Jesus, porque ele
não fazia parte daqueles discípulos que acompanhavam o Mestre. Estes apóstolos
incorreram num erro muito semelhante ao dos escribas e fariseus que queriam
impedir a obra de Jesus, acusando-o de expulsar demônios com o poder de
Belzebu. Os discípulos corriam sério perigo. Não é sem razão que Jesus evitava
o contacto deles com os fariseus. Foi bem nestas circunstâncias que ele trouxe
estes ensinos sobre a intolerância. Ele esclarece que, se alguém usa o seu nome
para fazer milagre, não pode ser um inimigo que venha a infamá-lo, como os
escribas e fariseus. Então estabelece o princípio: “...quem não é contra
nós, é por nós”. E Jesus ainda promete galardão a todo o que oferece, mesmo
que seja um copo de água, a um discípulo seu.
V.42 - E
quem fizer tropeçar a um destes pequeninos crentes,
melhor lhe fora que se lhe
pendurasse ao pescoço
uma grande pedra de moinho, e fosse
lançado ao mar.
V.43 - E,
se tua mão te faz tropeçar, corta-a; pois é melhor
entrares maneta na vida do que, tendo as duas mãos,
ires para o inferno, para o fogo
inextinguível
V.44 -
[onde não lhes morre o verme, nem o fogo se apaga].
V.45 - E
se teu pé te faz tropeçar, corta-o;
é melhor entrares na vida aleijado
do que,
tendo os dois pés, seres lançado no
inferno
V.46 -
[onde não lhes morre o verme, nem o fogo se apaga].
V.47 - E
se um dos teus olhos te faz tropeçar, arranca-o;
é melhor entrares no reino de Deus
com um só dos teus olhos
do que, tendo os dois, seres lançado
no inferno,
V.48 -
onde não lhes morre o verme, nem o fogo se apaga.
V.49 -
Porque cada um será salgado com fogo.
V.50 - Bom
é o sal; mas se o sal vier a tornar-se insípido,
como lhe restaurar o sabor?
Tende sal em vós mesmos, e paz uns
com os outros.
Jesus ensina que pelo fruto se conhece a árvore (cf. Mateus 12:33). Assim
também, pelas atitudes, os discípulos demonstravam o que estava em seus
corações. Eram cousas terríveis que podiam levar os pequeninos crentes a
tropeçarem e a se perderem. Por isso ele exorta que provocar esse tipo de
escândalo é cometer suicídio espiritual. Antes que isso acontecesse seria
melhor morrer afogado com uma pedra amarrada ao pescoço. Com uma série de
hipérboles, usando a ilustração de arrancar membros do corpo, o Mestre enfatiza
a urgência de se eliminar da vida tudo o que pode levar os pequeninos crentes a
tropeçarem: as más obras das mãos; a marcha dos pés correndo em direção ao mal;
a concupiscência dos olhos apressando a consumação do pecado. Se isto não for
resolvido, o destino certo é o inferno de fogo para aqueles que colocam
obstáculos na vida espiritual dos pequenos seguidores de Cristo.
Como resolver este problema? Sendo salgado com fogo! Cada um dos discípulos
precisava submeter-se a esse processo. O sal é o elemento necessário
para a preservação da sanidade espiritual. O fogo é o fervor necessário para
deixar a inclinação para o mal ainda tolerado por eles. Somente eliminando
estes problemas interiores, eles poderiam ter paz, uns para com os outros.
O sal e o fogo vêm como resultado do crente acatar os ensinamentos de
Cristo e de aceitar a direção do Espírito em sua vida.