sábado, 13 de abril de 2013

CAPÍTULO 14


CAPÍTULO  14    

 

V.  1 - Dali a dois dias era a páscoa e a festa dos pães asmos;

           e os principais sacerdotes e os escribas procuravam

           como o prenderiam, à traição e o matariam.

V.  2 - Pois diziam: Não durante a festa,

           para que não haja tumulto entre o povo.

 

A decisão de prender Jesus já tinha sido tomada pelos principais sacerdotes e fariseus logo depois da ressurreição de Lázaro, quando divulgaram a ordem para denunciá-lo, qualquer que soubesse onde ele estava. Mas agora eles haviam decidido que era preciso matá-lo, o mais depressa possível. Só um problema os principais sacerdotes e escribas queriam evitar. Era o tumulto que poderia ocorrer entre o povo concentrado em Jerusalém naqueles dias de festa. A traição foi o método pelo qual optaram para apanhá-lo da maneira mais discreta, sem alarmar a população. Só faltava uma oportunidade para consumá-la.

Jerusalém sempre foi sujeita a caprichosas agitações populares. Ali, quem contasse com o apoio do povo contava automaticamente com uma grande vantagem para qualquer movimento. Os próprios exércitos romanos que eram tão bem organizados não tinham habilidade suficiente para enfrentar os tumultos na cidade. Quando Paulo foi preso e remetido sob custódia para Cesaréia, Lísias, comandante das tropas romanas de Jerusalém, determinou que ele fosse acompanhado de uma escolta constituída de duzentos soldados, duzentos lanceiros e setenta cavaleiros, um total de quatrocentos e setenta  homens de guerra, para oferecer segurança ao apóstolo ameaçado de morte por seus perseguidores judeus.

Jesus contava com a simpatia do povo até estas alturas do seu ministério. Por isso podemos entender a razão dos líderes judeus estarem decididos a realizar o atentado contra ele somente depois da páscoa, quando a cidade se esvaziava da população  flutuante de peregrinos. Mas a disposição de Judas Iscariotes oferecer os seus serviços aos principais sacerdotes fez com que eles reconsiderassem o assunto e, afinal, tudo aconteceu mesmo na época determinada por Deus para o sacrifício do Cordeiro. Cumprindo este aspecto necessário do propósito divino, ali concorriam o Filho de Deus com a disposição de oferecer a sua própria vida, os líderes religiosos com o desejo de matá-lo e o traidor com a decisão de entregá-lo. Os principais implicados na trama a que se refere o primeiro verso desta passagem são: o Sumo Sacerdote, o Capitão do Templo, os dirigentes dos vários procedimentos litúrgicos diários e semanais, e ainda o Tesoureiro. Estes eram os supervisores permanentes dos serviços sagrados.

Com este pressentimento de morte Marcos inicia a narrativa da paixão, que se estende pelos capítulos 14 e 15 do seu Evangelho. Era provavelmente quarta-feira. Faltavam dois dias para a festa da Páscoa e dos Pães Asmos. A grande festa era a páscoa, observada com o rigor de um sábado, e tinha início no dia 14 do mês de Nisã, que corresponde aproximadamente ao 14 de abril do nosso calendário. A festa dos Pães Asmos era menor em importância e se estendia por sete dias seguidos à Páscoa. 

Para a grande festa que lembrava a saída de Israel do Egito e a redenção do jugo de Faraó, eram feitos intensos preparativos. Um mês antes, as sinagogas começavam a recordar o significado do evento. Mas nas escolas, as crianças tinham diariamente uma lição sobre o assunto. Todos os homens que vivessem num raio de vinte e cinco quilômetros de distância de Jerusalém eram obrigados a comparecer às festividades . Para facilitar a marcha dos peregrinos, os caminhos eram melhorados, e as pontes, restauradas. Todas as sepulturas à beira do caminho eram caiadas de branco para ficarem bem visíveis, a fim de que nenhum peregrino as tocasse. Assim eles se mantinham incontaminados e podiam participar dos festejos. Todo cidadão israelita tinha um grande desejo na vida, que era participar de uma ceia da Páscoa em Jerusalém. Por isso, lá chegavam judeus peregrinos do mundo todo em que havia colônias israelitas. Betânia e Betfagé funcionavam como alojamentos auxiliares de Jerusalém, porque não havia lugar para tanta gente dentro das muralhas nas épocas de festa. E a hospedagem era gratuita.

A pedido de um governador da Palestina, por volta do ano 65 DC, o Sumo Sacerdote forneceu um relatório sobre o número de sacrifícios feitos no Templo naquela Páscoa, com o fim de estimar a população existente na cidade durante as festas. A informação diz que foram sacrificados duzentos e sessenta e cinco mil e quinhentos cordeiros. Mas a Lei estabelecia que cada cordeiro devia ser oferecido por um grupo não menor do que dez pessoas. Portanto havia pelo menos uns três milhões de almas na Páscoa daquele ano, na cidade de Jerusalém.

Quando o povo reunido para a festa lembrava com euforia a sua libertação do jugo egípcio, automaticamente os seus ânimos se inflamavam, e ressurgia o desejo ardente de libertação do jugo romano. Por isso as autoridades imperiais andavam sempre alertas, e Jerusalém recebia em períodos de festa um reforço especial de tropas que vinha de Cesaréia, a capital romana da Judéia, residência de governadores e procônsules, portanto, uma cidade bem guarnecida de forças militares.

Prender Jesus nessa época significava um grande risco de insurreição popular, com imprevisíveis conseqüências. Isto era o que temiam os principais sacerdotes e escribas. Então queriam adiar os acontecimentos. Mas os últimos momentos da vida do Filho de Deus entre os homens e o seu êxodo, ocorreram na Páscoa, em Jerusalém, na presença de judeus provenientes dos lugares mais remotos da Terra, que vinham para relembrar o livramento do povo da escravidão do Egito.

Ali mesmo, todos puderam tomar conhecimento do sacrifício daquele que poucos compreenderam ser o Cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo.

 

V.  3 - Estando ele em Betânia, reclinado à mesa, em casa de Simão, o leproso,

           veio uma mulher trazendo um vaso de alabastro com preciosíssimo

           perfume de nardo puro; e, quebrando o alabastro,

           derramou o bálsamo sobre a cabeça de Jesus.

V.  4 - Indignaram-se alguns entre si, e diziam:

           Para que este desperdício de bálsamo?

V.  5 - Porque este perfume poderia ser vendido por mais de trezentos denários,

           e dar-se aos pobres. E murmuravam contra ela.

V.  6 - Mas Jesus disse: Deixai-a; por que a molestais?

           Ela praticou uma boa ação para comigo.

V.  7 - Porque os pobres sempre os tendes convosco e, quando quiserdes,

           podeis fazer-lhes bem, mas a mim, nem sempre me tendes.

V.  8 - Ela fez o que pode: antecipou-se a ungir-me para a sepultura.

V.  9 - Em verdade vos digo: onde for pregado em todo o mundo o evangelho,

           será também contado o que ela fez, para memória sua.

 

Era quarta feira da semana da paixão e Jesus encontrava-se em Betânia tranqüilamente na casa de Simão, o leproso, onde foi honrado com uma ceia. Esta é a mesma casa de Marta, de sua irmã Maria e de seu irmão Lázaro, a quem Jesus havia ressuscitado, havia menos de um mês. João registra a sua presença dizendo que ele era um dos que estavam à mesa com Jesus  (João 12:1-2).

Naquela época o costume era de comer recostado a um divã que tinha uma das pontas encostada à mesa. A pessoa reclinava-se com o lado esquerdo sobre o divã, e com a mão direita pegava os alimentos da mesa. Os pés ficavam livres na outra extremidade do divã. Esta era uma etiqueta que havia sido introduzida pelos romanos na Palestina. E segundo a etiqueta local, o dono da casa recebia o hóspede com beijos e derramava algumas gotas de perfume sobre ele quando chegava, ou quando se punha à mesa. Estando Jesus reclinado sobre o divã, veio uma mulher com um vaso de alabastro cheio de perfume de nardo, e derramou todo o conteúdo do frasco sobre a sua cabeça e também sobre os seus pés.

O alabastro é uma pedra mole e translúcida, muito parecida com o mármore. Quando ela é cortada em peças de fina espessura, torna-se quase transparente, e os veios naturais da pedra destacam-se, formando desenhos muito bonitos. Com alabastro fazem-se copos, vasos, candeeiros e outros objetos. Foi um vaso deste material que a mulher quebrou para derramar sobre Jesus o perfume de nardo. Este era um bálsamo de aroma muito agradável, extraído de uma árvore natural do norte da Índia, que chegava à Palestina importado em frascos lacrados de alabastro. Era um perfume caro, e a quantidade que estava naquele frasco era cerca de trezentos e trinta gramas, ou seja, mais do que um copo de tamanho normal. O seu preço era superior a trezentos denários, isto é, superior a trezentas diárias de um trabalhador comum, o que equivale atualmente a mais de dez mil Reais. A reação de muitos dos presentes, inclusive dos discípulos, foi contrária à atitude da mulher. Alegavam que aquele perfume poderia ter sido vendido, e o dinheiro repartido aos pobres. João informa que o dedo de Judas estava nesse protesto. Ele era cobiçoso e ladrão, pois roubava da bolsa dos apóstolos que estava aos seus cuidados. Por isso ele desejava oportunidades como aquela para fazer dinheiro (cf. João 12:4-6). 

Quanto a Jesus, ele aprovou plenamente a ação daquela mulher, dizendo que ela fez uma boa obra para com ele, e fez o que estava dentro das suas posses. Os pobres sempre haverá e qualquer um pode ajudá-los quando quiser, mas a oportunidade que ele oferecia ali era única, e aquela mulher não a deixou passar. Foi uma bela atitude que certamente representava a sua convicção de que ele é o Ungido de Deus, o Messias. Por isso ela o ungiu ali. Aquele era também um ato profético que só Jesus reconheceu, porque ela antecipou a unção do seu corpo para o sepultamento que viria a ocorrer dentro de dois dias. Naquele tempo costumava-se lavar o morto antes de sepultá-lo, e depois, ungi-lo com perfume. Nesta oportunidade o frasco era quebrado e colocado na sepultura ao lado do morto. O ato de bondade desta mulher foi um dos últimos dirigidos a Jesus, antes da sua morte, sendo comparável ao ato de adoração dos magos que lhe ofereceram presentes caríssimos de ouro, incenso e mirra (Mateus 2:11). Em nenhum dos dois casos houve desperdício. Uma das razões por que este episódio encontra-se registrado nos Evangelhos é a promessa de Jesus de que a ação daquela mulher seria contada no mundo todo, onde quer que fosse pregado o evangelho, para que ela fosse lembrada. O seu nome é Maria (cf. João 12:3). É a irmã de Marta e de Lázaro. A mesma que escolheu a boa parte, isto é, estar junto de Jesus (cf. Lucas 10:38-42). Esta parte nunca será retirada daqueles que o buscam na intimidade, com sinceridade.

Em contraste com a reprovação de alguns presentes, Jesus viu a atitude de Maria, não com olhos voltados para o ato em si ou para o seu valor financeiro, mas para o amor que ela demonstrou. Diante disso, a quantidade de dinheiro perde o significado. É como a oferta da viúva pobre, cujo valor espiritual era maior do que o das outras ofertas. Neste exemplo de Maria Jesus resolve uma dúvida de muitos crentes: quando alguém dispõe de uma boa quantidade de dinheiro ou de bens e decide usá-lo na obra de Deus, que deverá fazer: distribuir aos pobres, doar a instituições de caridade e assistência social ou empregar na obra do evangelho através da igreja que é o corpo de Cristo? A resposta é : a igreja, em primeiro lugar. Os pobres sempre é possível ajudar, quando se deseja, porque eles sempre existirão.

Para Judas deve ter sido uma grande decepção ver o Mestre aprovar o uso de um perfume tão caro, de modo considerado por alguns como desperdício. Se continuasse assim, a bolsa apostólica estaria sempre desfalcada, sem nenhuma oportunidade para ele que era ladrão, avarento e cobiçoso de dinheiro. Foi nesta crise de opiniões que Judas tomou a decisão de vender os seus serviços aos sacerdotes, entregando-lhes Jesus.

 

V.10 - E Judas Iscariotes, um dos doze, foi ter com os

           principais sacerdotes, para lhes entregar Jesus.

V.11 - Eles, ouvindo-o, alegraram-se e lhe prometeram dinheiro;

           nesse meio tempo buscava ele uma boa ocasião para o entregar.

 

A ameaça de morte que no início deste capítulo estava do lado de fora, manifesta-se agora no círculo mais próximo de Jesus, criando a oportunidade que procuravam os principais sacerdotes e escribas de prendê-lo à traição. A negociação é relatada com poucas palavras nos três Evangelhos Sinóticos. Mateus acrescenta que o preço da traição foi trinta moedas de prata (Mateus 26:15). Isto confirma a profecia de Zacarias 11:12. Este era também o valor da indenização pela morte de um escravo, estabelecida em Êxodo 21:32. Mas Jesus veio realmente para servir o homem no propósito de Deus como “servo”, palavra assimilada muitas vezes a “escravo” na linguagem bíblica. 

Embora seja insignificante o valor das trinta moedas de prata,  o gesto de Jesus entregar a sua vida por nós tem um preço inestimável que não podemos pagar eternamente. Cabe-nos aceitá-lo pela fé, para a nossa própria salvação.

 

V.12 - E no primeiro dia dos pães asmos, quando se fazia

           o sacrifício do cordeiro pascal, disseram-lhe seus discípulos:

           Onde queres que vamos fazer os preparativos para comeres a páscoa?

V.13 - Então enviou dois dos seus discípulos, dizendo-lhes: Ide à cidade,

           e vos sairá ao encontro um homem trazendo um cântaro de água;

V.14 - segui-o e dizei ao dono da casa onde ele entrar, que o Mestre pergunta:

           Onde é o meu aposento no qual hei de comer a páscoa com os meus discípulos?

V.15 - E ele vos mostrará um espaçoso cenáculo mobiliado e pronto;

           ali fazei os preparativos.

V.16 - Saíram, pois, os discípulos, foram à cidade e,

           achando tudo como Jesus lhes havia dito, prepararam a páscoa.

 

No início deste capítulo 14 do Evangelho de Marcos encontramos registrado o plano dos líderes judeus para tirar a vida de  Jesus, prendendo-o traiçoeiramente. Esta breve introdução relaciona todo este capítulo com aquilo que Jesus vinha anunciando sobre os seus sofrimentos, desde o capítulo 8, verso 31, com estas palavras: “Então começou ele a ensinar-lhes que era  necessário que o Filho do homem sofresse muitas cousas, fosse rejeitado pelos anciãos, pelos principais sacerdotes e pelos escribas, fosse morto e que depois de três dias ressuscitasse”.

Mas aquela introdução é também a porta que conduz aos acontecimentos finais do “Evangelho de Jesus Cristo, Filho de Deus”, e que Marcos registra cuidadosamente, para esclarecer tudo o que ele vinha profetizando sobre o seu futuro, incluindo a sua morte e ressurreição. A unção em Betânia fica bem explicada neste contexto, quando ele esclarece que estava sendo preparado para a sepultura. E desde agora os acontecimentos se desenrolam rapidamente até o final da narrativa. Se antes Jesus vinha prevenindo os discípulos de maneira discreta sobre o que estava para acontecer, agora ele estava falando de modo claro, dentro do próprio contexto dos acontecimentos, desde que os principais sacerdotes e fariseus deram ordem para, se alguém soubesse onde ele estava, denunciá-lo, a fim de o prenderem. A intensificação dos conflitos com os adversários devida aos fatos ocorridos na segunda e na terça feira no Templo também apontam para uma visível mudança da situação.

Nestas condições, a boa ação de Maria ao ungir Jesus é digna de memória no evangelho, por contrastar frontalmente com a atitude daqueles que se indignaram, alegando desperdício do perfume. Mas, derramando-o sobre a sua cabeça, ela estava  procedendo à unção do Rei, porque certamente o reconhecia como tal. O apóstolo João informa que os discípulos só vieram a compreendê-lo assim, depois da ressurreição, quando ele foi glorificado (João 12:15-16). Ele até coloca a unção de Jesus por Maria no seu Evangelho, antes dele ter entrado como Rei em Jerusalém, montado no jumentinho. Ele apresenta uma ordem lógica dos fatos que podemos compreender assim:

1 - A unção do Rei

2 - A entrada triunfal do Rei em Jerusalém (já ungido)

3 - A glorificação do Rei (na ressurreição)

Portanto, a boa obra de Maria está relacionada com um dos pontos fundamentais para a pregação do evangelho, que é a visão de Jesus como Rei. Aquela mulher tinha consciência de muitos aspectos dos ensinos dele, porque sentava-se aos seus pés, para ouvi-lo com atenção (cf. Lucas 10:38-42).

Jesus tinha consciência de que a sua morte e os acontecimentos relacionados com ela deviam ocorrer na Páscoa. Por isso ele tomou todas as precauções necessárias  para cumprir as profecias pertinentes aos fatos: fez preparar o jumentinho (Zacarias 9:9) e mandou providenciar as espadas (Isaías 53:12; Lucas 22:36-37). Além disso teve o cuidado de entrar discretamente em Jerusalém para a última ceia, a fim de cumprir cabalmente o seu ministério, antes que chegasse aquela sua hora. Isto fica muito evidente no relato dos Evangelhos.

Ele tinha tantas cousas para lhes ensinar naquela noite, que o Evangelho de João conta com cinco capítulos, de um total de vinte e um, dedicados exclusivamente a estes assuntos. São os de números treze até o dezessete, inclusive.

Era o primeiro dia dos pães asmos, quando Jesus ordenou a dois de seus discípulos que fossem à cidade preparar a Páscoa. O pão asmo é pão sem fermento, do tipo daquele que foi assado para ser comido às pressas no dia da saída do Egito, conforme instruções de Êxodo 12:14-20, quando foi celebrada a primeira Páscoa. Agora, quando os judeus faziam os preparativos para a festa, a primeira medida era retirar das casas todo fermento, o que aliás se fazia segundo um ritual cerimonioso acompanhado de orações, pois uma das idéias relacionadas com o fermento na concepção bíblica é a de podridão ou de corrupção. Também como preparativo era feito o sacrifício do cordeiro para ser comido, assado ao fogo. O seu sangue lembrava a proteção de Deus sobre os pimogênitos de Israel quando o Anjo da Morte passou sobre o Egito. Outras iguarias que constavam dos preparativos para a refeição pascal eram um molho feito de ervas amargas para lembrar as amarguras da escravidão do Egito, uma pasta feita de maçãs, tâmaras, romãs e nozes, com pedacinhos de canela que lembravam a massa dos tijolos com palha de trigo, fabricados pelos hebreus quando lá eram escravos.  Eram usados também quatro cálices grandes de vinho misturado com água de cerca de meio litro cada um, que se bebia em momentos diferentes da celebração, os quais lembravam as quatro promessas de Deus contidas em Êxodo 6:6-7. Assim, cada detalhe destes preparativos lembrava algum fato relacionado com a libertação do povo da escravidão do Egito.

Era também durante o período destas festividades que o Filho de Deus haveria de libertar o homem da escravidão do pecado, e esta é a última Páscoa da História da Redenção. Por isso era muito importante que Jesus a celebrasse com seus discípulos. Convém observar que nesta celebração não se faz menção do cordeiro pascal tradicional, certamente porque o Cordeiro de Deus estava presente ali, para ser sacrificado.

O cenáculo em que foi feita a comemoração provavelmente ficava na casa dos pais de João Marcos, o escritor deste Evangelho. Ali também os discípulos continuaram a reunir-se após a ascensão de Jesus, enquanto aguardavam a chegada do Espírito Santo (Atos 1:13). Mais tarde este local parece ter-se tornado ponto de reunião dos irmãos em Jerusalém (Atos 12:12).   

                     

V.17 -  Ao cair da tarde foi com os doze.

V.18 - Quando estavam à mesa e comiam, disse Jesus:

           Em verdade vos digo que um dentre vós, o que come comigo, me trairá.

V.19 - E eles começaram a entristecer-se e a dizer-lhe, um após outro:

           Porventura sou eu?

V.20 - Respondeu-lhes:É um dos doze, o que mete comigo a mão no prato.

V.21 - Pois o Filho do homem vai, como está escrito a seu respeito;

           mas ai daquele por intermédio de quem o Filho do homem

           está sendo traído. Melhor lhe fora não haver nascido!

 

O assunto do capítulo 14 que estamos estudando é a traição que fizeram contra Jesus. Porém este tema já tinha sido insinuado no capítulo 13, quando ele disse: “Um irmão entregará à morte outro irmão e o pai ao filho...”.  A idéia desta “entrega” entre parentes próximos alcança até a traição dentro do círculo mais íntimo dos discípulos.

Depois de anunciar a intenção dos principais sacerdotes e escribas de prenderem  Jesus à traição logo no início, o capítulo 14 também relata a negociação de Judas com os líderes religiosos e, mais adiante, o aviso de Jesus de que um dos doze iria traí-lo. Depois, narra a sua prisão e entrega aos principais sacerdotes, anciãos e escribas.

Os preparativos para a Páscoa foram feitos na quinta-feira, durante o dia. Agora estamos no cair da tarde, quando o sol se põe, e começa a sexta-feira para os judeus. Os primeiros acontecimentos que se deram durante a celebração da ceia pascal são narrados neste parágrafo, dos versos 17 ao 21.

A consciência que Jesus tinha de que um dos doze haveria de traí-lo é posta às claras nos quatro Evangelhos. Todavia não é fácil dizer a partir de quando ele percebeu isto. Mas bem cedo ele já afirmava: “Não vos escolhi em número de doze? Contudo um de vós é diabo” (João 6:70). Ele também demonstrou a sua aguçada psicologia e o seu poder sobrenatural de ver o que está escondido no coração do ser humano, no episódio da cura do paralítico em Cafarnaum, quando denunciou os escribas por arrazoarem em seus corações, acusando-o de blasfemar, ao dizer que os pecados daquele homem estavam perdoados. No Evangelho de João encontramos esta afirmação do apóstolo: “E não precisava de que alguém lhe desse testemunho a respeito do homem, porque ele mesmo sabia o que era a natureza humana” (João 2:25). E chegando ao final dos acontecimentos, entendemos que Jesus já sabia há mais tempo quem era o traidor. Ainda que ele o soubesse desde o início, havia muitas razões para que o seu nome não fosse revelado. Primeiramente ele amava aquele discípulo, e por meio desse amor deve ter tentado poupá-lo do risco dele desencaminhar-se, procurando conservá-lo sempre ao seu lado. A sua avareza era conhecida, pois ele roubava dinheiro da bolsa. Mas, ao invés de expulsá-lo do colégio apostólico, Jesus foi paciente com ele e tratou-o com especial deferência até o último instante, quando o colocou em lugar de honra à mesa da ceia pascal, onde comeram juntos do mesmo prato, reclinados lado a lado, um do outro. João relata que Jesus lhe ofereceu um bocado da sua própria mão, gesto que demonstrava sua amizade e consideração por ele.  Mas, ao contrário do que se poderia esperar, a reação de Judas foi fatal, porque deu lugar ao diabo que entrou nele naquele momento (João 13:26-27). Era o ódio que se manifestava nele por ver frustrados os seus projetos de enriquecimento.

Aquele caso do perfume derramado deixou-o, com certeza, muito revoltado. Possivelmente a idéia de entregar o Mestre por dinheiro apareceu mediante a oportunidade oferecida pelos adversários pedindo que o denunciassem, depois da ressurreição de Lázaro e, mais tarde, resolvendo prendê-lo à traição. Mas Jesus tentou segurar as rédeas o quanto pode, até poucas horas antes de consumar-se a sua prisão. Daí por diante entendemos que não havia mais nada a fazer, como relata João no seu Evangelho, quando Jesus disse:      “O que pretendes fazer, faze-o depressa”.

Foi só neste momento que os discípulos ficaram sabendo quem era o traidor. Se Jesus o tivesse identificado com antecedência, os outros o discriminariam e poderiam até mesmo tentar usar de força ou de violência para impedir a concretização do seu plano.    isto não convinha, até porque era necessário que se cumprissem as Escrituras a respeito deste fato. Portanto era este o momento exato para Jesus trazer esta revelação.

No Salmo 41:9 encontra-se o seguinte testemunho profético: “Até o meu amigo íntimo, em quem eu confiava, que comia do meu pão, levantou contra mim o calcanhar”. Daqui podemos deduzir que os sentimentos de Jesus para com Judas eram os mais nobres possíveis, a saber, de amizade íntima, como o de alguém que traz o amigo no coração; de confiança, como o de alguém que não espera traição; e de cuidado, como o de alguém que está disposto a repartir com o outro o seu pão. Com base nisto podemos imaginar a agonia que se passava no íntimo de Jesus naquela ceia. Mas o sentimento de Judas para com Jesus era extremamente contrário e podemos dizer que, em retribuição a tudo isso, ele se arremeteu literalmente contra o seu Mestre com um chute, tal qual um animal que dá um coice no seu tratador. Ele recusou o pão que desceu do céu.

Muitos questionam a razão por que Jesus o escolheu como apóstolo. Com certeza foi por um gesto de amor. Ele deve ter-se aproximado de Jesus entre muitos outros seguidores. Se houvesse alguma segunda intenção nesta sua atitude de aproximação, talvez  interesses materiais, é possível entender que só o Mestre podia ajudá-lo a eliminar do coração esta maldade. Vendo então a sua grande carência, ele lhe abriu a oportunidade, por amor. Mas Judas devia ter tomado a cruz de Cristo que significa submeter-se ao propósito de Deus, renunciando a sua própria vida, seu caráter, sua personalidade, atentando para esta oportunidade, como quem recebe de Deus a mais valiosa proposta de amor, porque aí está a salvação. Cabe ao homem recusar ou aceitar a cruz que o próprio filho de Deus carregou. Diante dela cada um deve tomar uma definição que vai decidir a sua própria sorte. Judas endureceu o coração deliberadamente diante da proposta divina que revelou quem ele era. Este não é o caso dele somente. É de todo o que rejeita a pregação do evangelho, diante do qual todo ser humano se manifesta ou para a perdição, ou para a salvação, recusando-o ou aceitando-o.

Mas ainda há aqueles que têm dúvidas sobre o caso de Judas, considerando-o como um injustiçado. Assim, querem responsabilizar a Deus pelo destino desse criminoso. Pela justiça de Deus a sua condenação é tão certa e tão grande que Jesus afirma que seria melhor ele não ter nascido. Pelo fato das Escrituras anunciarem de antemão o que haveria de acontecer, Deus não é absolutamente responsável pelos atos do traidor. Deus  conhece o presente, o passado e o futuro. Ele sabe o que qualquer um vai praticar em qualquer tempo. Por isso ele pode anunciar previamente os maus desígnios e as más ações de qualquer ser humano, sem contudo forçar a situação para que os fatos aconteçam. Foi o próprio Judas quem se manifestou traidor. Por causa da sua cobiça colocou no coração a pretensão de entregar Jesus e arbitrou livremente fazê-lo depressa. A revelação antecipada destes acontecimentos está dentro do divino propósito de Redenção, em benefício dos que devem ser salvos, dando-lhes oportunidade de confrontar os fatos e de tomá-los como exemplo. Assim como Judas, há muitos outros traidores na história da igreja, que terão o mesmo destino. São todos réus de morte, e nenhum é alvo de injustiça da parte de Deus. Jesus é o exemplo análogo em sentido oposto. As Escrituras já anunciavam o seu fim, como ele mesmo diz: “...o Filho do homem vai, como está escrito a seu respeito...”  Mas não foi Deus quem o obrigou a morrer por causa das Escrituras. Ele veio de livre e espontânea vontade (cf. Hebreus 10:7-9). Foi por conhecer o propósito do coração do Filho que Deus pode anunciá-lo antecipadamente nas Escrituras.

Resumindo: Deus conhecia Judas antecipadamente pelo seu mau propósito e conhecia também Jesus pelo seu bom propósito. Tudo foi anunciado antecipadamente, mas cada um decidiu livremente a sua própria sorte. Judas recebeu condenação eterna e Jesus recebeu glória, domínio, honra e poder pelos séculos dos séculos.

 

V.22 - E, enquanto comiam, tomou Jesus um pão e, abençoando-o,

           o partiu e lhes deu, dizendo:Tomai, isto é o meu corpo.

V.23 - A seguir, tomou Jesus um cálice e, tendo dado graças,

           o deu aos seus discípulos; e todos beberam dele.

V.24 - Então lhes disse: Isto é o meu sangue, o sangue da

           [nova] aliança, derramado em favor de muitos.  

V.25 - Em verdade vos digo que jamais beberei do fruto da videira,

           até aquele dia em que o hei de beber, novo, no reino de Deus.

V.26 - Tendo cantado um hino, saíram para o Monte das Oliveiras.

A instituição da Ceia do Senhor ocorreu na quinta-feira, durante a noite anterior à crucificação. Segundo o calendário dos judeus já era sexta feira, visto que para eles o dia começa ao por do sol, cerca das 6 horas da tarde.

A celebração da Páscoa Judaica era uma cerimônia que se realizava em várias etapas intercaladas com orações. Para o judeu ela nunca poderá transformar-se em um ritual. É sempre uma comemoração do poder e da misericórdia de Deus. Um estudioso da Bíblia descreve os atos desta cerimônia comemorativa do seguinte modo:

Primeiro: O chefe da família tomava o cálice chamado cálice da bênção, e orava pelos alimentos, santificando-os para aquela cerimônia. Em seguida todos bebiam dele.

Segundo: A pessoa que ia oficiar a comemoração lavava as mãos por três vezes.

Terceiro: Folhas de salsa ou de alface eram molhadas em uma vasilha contendo água salgada, o que era um pequeno aperitivo da festa para cada um comer. A folha de salsa representava o hissopo usado para aspergir o sangue do cordeiro nos umbrais das portas no Egito. A água salgada representava as lágrimas derramadas na terra da escravidão, e também o mar vermelho que se abriu para o povo passar com segurança.

Quarto: Com ações de graça partia-se o pão asmo chamado pão da aflição, que era  disposto sobre a mesa em três círculos, fazendo lembrar que, como escravos, eles nunca tiveram um pão inteiro na terra do pecado, mas somente pedaços.

Quinto: Era feita a narrativa da história da libertação. Neste ato a pessoa mais nova presente perguntava qual a razão deste dia ser diferente de todos os outros.  Então o chefe da casa respondia com a narração.

Sexto: Eram cantados os salmos de louvor de números 113 e 114, que fazem parte do Hallel, constituído dos salmos 113 até o 118, inclusive.

Sétimo: Era bebido o vinho do segundo cálice, chamado cálice da proclamação ou da explicação.

Oitavo: Todos os presentes procediam à lavagem das mãos, preparando-se para a ceia pascal.

Nono: Eram dadas ações de graça com as seguintes palavras: Bendito és tu, ó Senhor, que fazes brotar da terra o fruto. Bendito és tu, ó Senhor, que nos santificaste com os teus mandamentos e nos ordenas comer pão sem fermento. Nesta oportunidade era distribuído o pão asmo.

Décimo: Era colocado um pouco de ervas amargas entre os pedaços do pão asmo que se comia depois de passá-lo por um molho feito de maçãs, tâmaras, nozes e romãs, que lembrava o tijolo fabricado pelos hebreus no Egito.

Décimo primeiro: Era o ato da refeição propriamente dita, em que se devia comer todo o cordeiro assado ao fogo.

Décimo segundo: Todos lavavam novamente as mãos.

Décimo terceiro: Era comido todo o restante do pão asmo.

 Décimo quarto: Era feita uma nova oração de ações de graça contendo o pedido da vinda de Elias, como precursor do Messias. Agora se tomava o vinho do terceiro cálice, chamado cálice das ações de graça, que dá origem à expressão “eucaristia”. Sobre este cálice eram pronunciadas estas palavras de bênção: Bendito és tu, Senhor nosso Deus, Rei do Universo, que criaste o fruto da videira.

Décimo quinto: Cantava-se a segunda parte do Hallel, isto é, os salmos de números 115 até 118.

Décimo sexto: Bebia-se o vinho do quarto cálice e cantava-se o salmo 136, o grande Hallel.

Décimo sétimo: Eram feitas mais duas orações, com que se encerrava a celebração.

De tudo isto, o que recebemos como ordenança de Jesus para a celebração da Santa Ceia cristã foi:

 

1 - Fazer a celebração em memória dele (Lucas 22:19; 1Coríntios 11:24-25). 

2 - Tomar o pão, dar graças e repartir entre os discípulos, para todos comerem dele.

3 - Tomar o cálice, dar graças e dar aos discípulos, para todos beberem dele.

O pão sem fermento representa o corpo santo de Cristo que foi oferecido na cruz. O cálice, ou seja, o seu conteúdo, representa o sangue da nova aliança, que ele derramou na cruz, horas depois da instituição da ceia. Esta nova aliança de Deus com os homens, que tem Jesus por mediador é bem diferente daquela feita com a nação de Israel no passado. A primeira foi selada com sangue de animais e foi completada com a Lei de Moisés. A segunda, a nova aliança, é individual, para todo homem, independentemente da nacionalidade. A questão vital é a fé em Cristo como mediador, a saber, aquele que pela sua obra de vida, morte e ressurreição, é capaz de colocar-nos na presença de Deus. Nesta aliança a Lei de Moisés é substituída pelo Espírito Santo que é capaz de imprimir nas nossas mentes e de inscrever nos nossos corações as leis de Deus (Hebreus 8). Isto leva-no à obediência que agrada a Deus, obediência por amor, bem diferente daquela obediência legal, resultante de um compromisso com a Lei. O sangue da nova aliança é o sangue de Cristo e o seu evangelho é a Lei Perfeita ou Lei da Liberdade (cf. Tiago 1:25). 

É sumamente importante compreender o simbolismo contido no pão e no fruto da videira como símbolos representativos do corpo e do sangue de Jesus, o mediador da nova aliança. Israel, como nação, a videira plantada por Deus, desde cedo demonstrou não ter qualificações para servir de mediador da Nova Aliança devido às suas muitas falhas. O remanescente fiel da nação, apesar de ser chamado fiel, era também humano e, portanto, imperfeito. Os próprios discípulos de Jesus afastaram-se na hora da sua morte. As mulheres que o seguiam observavam-no de longe. Ele estava só na hora da redenção, como único e digno representante de Israel. Ele é o verdadeiro produto da videira plantada por Deus, e o seu sangue é a mais elevada expressão do fruto dessa videira, porque resume a sua vida e obra. A fim de consumar o sacrifício, ele teve que encarnar, recebendo o corpo, representado pelo pão, que no final da sua vida terrena, ele ofereceu na cruz . Portanto os elementos da ceia, o pão e o fruto da videira, têm um elevadíssimo significado espiritual.

No verso 25 Jesus afirma a certeza da vinda do reino de Deus e a sua participação na ceia quando isto acontecesse. Portanto podemos estar certos de que ele está presente e toma parte desta comemoração toda vez que a igreja se reúne para celebrar a sua morte. Pois, em Pentecoste, o reino de Deus manifestou-se poderosamente no estabelecimento da igreja (cf. Marcos 9:1).

A ceia tem também o sentido de esperança da volta de Cristo, como Paulo escreve: “Porque todas as vezes que comerdes este pão e beberdes o cálice, anunciais a morte do Senhor, até que ele venha” (1Coríntios 11:26). A celebração da ceia no primeiro dia da semana, com utilização do pão asmo, foi orientação do Espírito Santo para a igreja primitiva (Atos 20:7; 1Coríntios 5:8).

 

V.27 - Então lhes disse Jesus: Todos vós vos escandalizareis

           porque está escrito:

               Ferirei o pastor e as ovelhas ficarão dispersas.

V.28 - Mas, depois da minha ressurreição, irei adiante de vós para a Galiléia.

V.29 - Disse-lhe Pedro: Ainda que todos se escandalizem, eu jamais!

V.30 - Respondeu-lhe Jesus: Em verdade te digo que hoje, nesta noite,

           antes que duas vezes cante o galo, tu me negarás três vezes.

V.31 - Mas ele insistia com mais veemência: Ainda que me seja necessário

           morrer contigo, de nenhum modo te negarei. Assim diziam todos.

 

Depois das comemorações no cenáculo e de um prolongado período de importantes instruções aos discípulos, de acordo com o Evangelho de João, Jesus saiu com eles, altas horas da noite, em direção ao Monte das Oliveiras, com destino ao Jardim do Getsêmani. Foi antes de chegar a este lugar que se passou a cena descrita por Marcos neste parágrafo. Os prognósticos registrados aqui entre os últimos do ministério de Jesus não são nada animadores. Isto porque a crise iniciada entre os discípulos durante a unção em Betânia por causa do perfume derramado e que se manifestou violentamente em Judas deverá atingir em breve todos os outros discípulos, conforme Jesus está prevenindo. Pedro, aquele que o seguia mais de perto, será o primeiro a negá-lo literalmente, apesar das suas insistentes afirmações em contrário. Mas os outros também o negariam com  suas atitudes, apesar de hipotecarem diante do Mestre, juntos com Pedro, a corajosa intenção de defendê-lo até à morte.

Jesus, porém, não se deixou abalar por isso. Ele suportou destemidamente, desde o início do seu ministério, todas as condições adversas criadas pelos inimigos, os representantes da religião estabelecida tradicionalmente. Agora ele enfrenta com a mesma serenidade a traição por parte de um dos seus íntimos. E ainda está disposto a encarar os próximos acontecimentos até à morte na cruz, confortando os discípulos através das Escrituras, até mesmo quanto ao desprezo que eles lhe votariam. A promessa de um futuro encontro na Galiléia era ao mesmo tempo um estímulo para que eles não perdessem as esperanças quando debandassem, e um compromisso de perdão ao ato de o abandonarem no momento em que o apoio deles era mais oportuno e bem-vindo.

Quanto aos discípulos, mais tarde eles entenderam que até mesmo isso cooperou no processo do seu amadurecimento, pois não é sem razão que Marcos registra aqui estas reminiscências de Pedro. Mas Jesus estava bem consciente disto porque, ligada à profecia do ferimento do pastor e da dispersão das ovelhas de Zacarias 13:7, está a outra também de Zacarias 13:9 que diz: “Farei passar a terceira parte pelo fogo, e a purificarei, como se purifica a prata, e a provarei, como se prova o ouro; ...” A atitude de Pedro agora é muito semelhante àquela de quando ele reprovou Jesus ao predizer os seus sofrimentos, morte e ressurreição (Marcos 8:31). A sua afirmação ao dizer que jamais se escandalizaria mesmo que os outros se escandalizassem é tão incisiva e de tanta autoconfiança, a ponto de insinuar que Jesus dependia dele. Com base nisto podemos entender por que ele sacou da arma e cortou a orelha do soldado na hora da prisão de Jesus. O sentimento deste discípulo todavia não é para comparar com o do traidor. O pescador não abrigava ódio em seu íntimo. Ele pode ter sido acometido de medo da situação ao encará-la de frente. O que não se pode deixar de reconhecer é que ele amava o Mestre, apesar das fraquezas que depois superou, embora envergonhado.

A intenção de Marcos ao descrever estes fatos não é por em evidência o anúncio do fracasso de Pedro, mas a fraqueza de todos os discípulos. Certamente eles ainda eram portadores da dureza de coração de que Jesus tratou no capítulo 8, e que não lhes permitia compreender os fatos e nem as palavras do Mestre. Afora tudo isto, eles também deviam ter ambições como Tiago e João, isto é, de ocupar lugar de destaque no reino do Messias. E não é descartável a hipótese de sentirem medo das autoridades, porque na hora da prisão todos fugiram.

Desde o início do capítulo 14 Marcos parece transformar a narrativa numa espécie de funil que conduz a atenção do leitor rapidamente para o desfecho da história. A unção de Jesus, o pacto da traição, a indicação do traidor e o aviso a Pedro são episódios que, juntamente com os dois que serão relatados em seguida, levam o assunto ao ponto de maior suspense que é a entrega de Jesus. Até a palavra “entrega” foi escolhida com muita propriedade, sendo a palavra chave deste capítulo.

E o próximo quadro pode ser descrito pela idéia de que  “a hora se aproxima”.

 

V.32 - E foram a um lugar chamado Getsêmani; Ali chegados, disse Jesus

           a seus discípulos: Assentai-vos aqui enquanto eu vou orar.

V.33 - E, levando consigo a Pedro, Tiago e João,

           começou a sentir-se tomado de pavor e de angústia.

V.34 - E lhes disse: A minha alma está profundamente triste até à morte;

           ficai aqui e vigiai.

V.35 - E, adiantando-se um pouco, prostrou-se em terra;

           e orava para que, se possível fosse, lhe fosse poupada aquela hora.

V.36 - E dizia: Aba, Pai, tudo te é possível; passa de mim este cálice;

           contudo, não seja o que eu quero, e, sim, o que tu queres.

V.37 - Voltando, achou-os dormindo; e disse a Pedro:

           Simão, tu dormes? não pudeste vigiar nem uma hora?

V.38 - Vigiai e orai, para que não entreis em tentação;

           o espírito, na verdade, está pronto, mas a carne é fraca.

V.39 - Retirando-se de novo, orou repetindo as mesmas palavras.

V.40 - Voltando, achou-os outra vez dormindo, porque os seus olhos

           estavam pesados; e não sabiam o que responder.

V.41 - E veio pela terceira vez e disse-lhes: Ainda dormis e repousais! Basta!

           chegou a hora; o Filho do homem está sendo entregue  nas mãos dos pecadores.

V.42 - Levantai-vos, vamos! Eis que o traidor se aproxima.

 

Jesus chegou ao Getsêmani para uma batalha de oração. Deixando oito dos discípulos na entrada do jardim, foi com os outros três, Pedro, Tiago e João, mais além e destes também se distanciou mais um pouco, para orar particularmente. Aos mais íntimos ele não escondeu o seu estado de alma caracterizado por tristeza, pavor e angústia, e nem a imperiosa necessidade de orar. Enquanto ele se encontrava sob forte tensão por causa do seu destino iminente, os discípulos, inconscientes do que se passava ao seu redor, sentiam-se à vontade, em grande medida, por estarem ao lado do Mestre. Nesta passagem pode-se notar de maneira muito impressiva o caráter humano da situação em que transcorreram os fatos, como Jesus a reconheceu assim, e como ele mesmo se viu envolvido nela. Nada era mais correto do que buscar as forças do Pai para vencer a batalha que se iniciava nesta hora. Os três discípulos que representavam todos os outros especialmente Pedro, tão considerado, não podiam vigiar enquanto o inimigo rondava e operava, porque estavam vencidos pela carne e dormiam!

A intensidade da agonia de Jesus é mais visível aqui do que a intensidade de  qualquer outro sentimento seu em qualquer outra parte dos Evangelhos, como se pode avaliar pelas expressões: “começou a sentir-se tomado de pavor e de angústia” e “A minha alma está profundamente triste até à morte”, informações que nos induzem a pensar nos fatos, mais por via emocional do que por via intelectual. O pedido de Jesus ao Pai para que lhe poupasse aquela hora, ou que passasse dele aquele cálice deve levar-nos à meditação sobre o tipo de sofrimento que ele enfrentava, antes de pensar numa possível fraqueza sua. A morte ou os sofrimentos físicos não o assustavam, mas ao lado destes estava, acima de tudo, o sofrimento moral e espiritual. Ele estava ciente da sua vergonhosa condenação por causa dos nossos pecados.

A conseqüência imediata disto foi a separação necessária que sentiu de Deus, quando os assumiu na cruz da maldição. Se estes sofrimentos não foram reais na obra de Jesus, como qualificar a redenção? Como teria sido aperfeiçoado o Autor da nossa salvação?  É certo que ele passou por tais sofrimentos, como testemunham as Escrituras: “Porque convinha que aquele, por cuja causa e por quem todas as cousas existem, conduzindo muitos filhos à glória, aperfeiçoasse por meio de sofrimentos o Autor da salvação deles” (Hebreus 2:10). Mas o pavor, a angústia e a tristeza não podiam prevalecer, perturbando a sua mente. Então ele se dirige ao Pai com forte clamor, submetendo-se à sua vontade, e foi ouvido. Assim Deus pode cumprir em Jesus todo o seu propósito, como está escrito: “Ele, Jesus, nos dias da sua carne, tendo oferecido, com forte clamor e lágrimas, orações e súplicas a quem o podia livrar da morte, e tendo sido ouvido por causa da sua piedade, embora sendo Filho, aprendeu a obediência pelas cousas que sofreu e, tendo sido aperfeiçoado, tornou-se o Autor da salvação eterna para todos os que lhe obedecem,...” (Hebreus 5:7-9).

É com ousadia e serenidade que ele enfrenta os próximos sofrimentos até à cruz. A disposição com que ele chega pela terceira vez aos discípulos que dormem é também impressionante, pois ele diz: “Basta!  chegou a hora; o Filho do homem está sendo entregue nas mãos dos pecadores. Levantai-vos, vamos! Eis que o traidor se aproxima”.

 

V.43 - E logo, falava ele ainda, quando chegou Judas, um dos doze,

           e com ele, vinda da parte dos principais sacerdotes, escribas

           e anciãos, uma turba com  espadas e cacetes.

V.44 - Ora, o traidor tinha-lhes dado esta senha: Aquele a quem eu beijar,

           é esse; prendei-o e levai-o com segurança.

V.45 - E, logo que chegou, aproximando-se, disse-lhe: Mestre. E o beijou.

V.46 - Então lhe deitaram as mãos e o prenderam.

V.47 - Nisto, um dos circunstantes, sacando da espada,

           feriu o servo do sumo sacerdote e cortou-lhe a orelha.

V.48- Disse-lhes Jesus: Saístes com espadas e cacetes para prender-me,

          como a um  salteador?

V.49- Todos os dias eu estava convosco no templo, ensinando, e não

          me prendestes; contudo é para que se cumpram as Escrituras.

V.50- Então, deixando-o, todos fugiram.

V.51- Seguia-o um jovem coberto unicamente com um lençol,

          e lançaram-lhe a mão.

V.52- Mas ele, largando o lençol, fugiu desnudo.

 

 

Esta narrativa da prisão de Jesus dentro dos acontecimentos finais do Evangelho de Marcos vem finalizar a longa preparação feita desde o início do seu ministério pelos principais sacerdotes, escribas e fariseus com fim de apanhá-lo.                O capítulo 14 acrescenta aos fatos a participação de Judas Iscariotes. Lucas deixa claro que o traidor conduziu também os principais sacerdotes, capitães do Templo e anciãos ao local dos acontecimentos (Lucas 22:52-53). A chegada de Judas com a turba armada de espadas e cacetes aproximando-se na escuridão por entre os troncos das oliveiras marca o momento mais desagradável de toda a história contada nos Evangelhos.

É que neste instante consuma-se a traição disfarçada sob a máscara de um beijo, o próprio gesto santo que simbolizava o amor e o bom relacionamento entre discípulos e mestres. Agora, porém, o discípulo rebelde de caráter perverso abusa dele para a sua própria condenação. Ao mesmo tempo concretiza-se o intento dos inimigos, quando hostes malignas atacam com uma falsa impressão de vantagem do reino das trevas sobre o reino da luz. Na expressão do próprio Senhor Jesus registrada por Lucas neste episódio, é a hora dos inimigos e do poder das trevas (cf. Lucas 22:53).

Os principais sacerdotes, escribas e anciãos eram as três classes de pessoas que compunham o Sinédrio que era o supremo tribunal dos judeus. Apesar do domínio romano a que a nação estava submetida, esta corte  conservava alguns direitos e a obrigação de manter certo policiamento em Jerusalém. Em algumas épocas o seu controle se estendia também sobre as sinagogas do exterior, como se pode notar no caso de Saulo que foi a Damasco com autorização do Sumo Sacerdote a fim de prender judeus cristãos e de levá-los a Jerusalém (cf. Atos 9:1-2).

A descrição feita por Marcos deste episódio, apesar de sucinta, é vívida e reflete o terror difundido pela turba excitada, munida de armas parceiras da violência, desejosa de ver correr sangue, e engrossada por populares curiosos que se foram incluindo pelo caminho. Tudo isto contrasta com a serenidade de Jesus demonstrada por estas palavras que Lucas afirma ter ele dirigido aos principais sacerdotes, capitães do Templo e anciãos que ali se encontravam: “Saístes com espadas e cacetes como para deter um salteador? Diariamente, estando eu convosco no templo, não pusestes as mãos sobre mim” (cf. Lucas 22:52-53).  E Marcos acrescenta: “...contudo, é para que se cumpram as Escrituras”. A que parte das Escrituras Jesus se refere, nenhum dos Evangelhos esclarece, mas o capítulo 53 de Isaías tem muito a ver com este episódio. Não se deve confundir a serenidade de Jesus com qualquer reflexo de temor diante de situação. Ele não assumiu aqui absolutamente nenhuma atitude passiva. João relata que com simples palavras ele derrubou toda aquela legião, quando se identificou diante deles, dizendo: “Sou eu”, expressão que , no Hebraico tem o mesmo valor que “Jeová”. Eles o temeram, recuaram e caíram por terra, provavelmente em atitude de adoração (João 18:6).

Mesmo nesta hora de intenso nervosismo e agitação por parte dos outros, foi Jesus quem conduziu os acontecimentos. Começando por receber Judas com a nobreza própria de um Mestre divino, aceitando-lhe o beijo e chamando-lhe “amigo”, segundo Mateus e Lucas. Em seguida, censurando a atitude irrefletida de Pedro, advertindo-o sobre a severidade de Deus contra os violentos (Mateus 26:52). Depois curou a orelha de Malco, o servo do Sumo Sacerdote ferido por Pedro, e ainda ordenou a liberação dos discípulos que já estavam mesmo prontos para fugir, com medo de enfrentar idêntica sorte que o Mestre. E nisto Jesus via calmamente o cumprimento das suas previsões, quando os  preveniu, dizendo: “Todos vós vos escandalizareis, porque está escrito: Ferirei o pastor e as ovelhas ficarão dispersas”.

O comportamento dos discípulos estava bem de acordo com o seu desenvolvimento espiritual: eram imaturos e dependentes da natureza humana. Apesar de terem protestado solidariedade ao Mestre  até à morte, agora capitulavam diante das dificuldades. E a violência ainda tinha lugar nas suas atitudes em momentos de excitação emocional, como no presente. Por isso, o porte de espadas entre eles só podia justificar-se por motivos verdadeiros, como de utilidade prática ou para cumprir uma profecia.

 Lucas esclarece no seu Evangelho, quando Jesus pergunta: “...Quando vos mandei sem bolsa, sem alforje e sem sandália, faltou-vos porventura alguma cousa? Nada, disseram eles. Então lhes disse: Agora, porém, quem tem bolsa , tome-a, como também o alforje; e o que não tem espada, venda a sua capa e compre uma. Pois vos digo que importa que se cumpra em mim o que está escrito: Ele foi contado com os malfeitores. Porque o que a mim se refere está sendo cumprido. Então lhe disseram: Senhor, eis aqui duas espadas. Respondeu-lhes: Basta” (Lucas 22:35-38).

Afinal, a quem pertenciam as duas espadas? Tiago e João eram fortes candidatos a proprietários delas, porque em outras ocasiões demonstraram ser violentos. Simão, o zelote, também era candidato provável, porque pertencia a um partido revolucionário extremista. De Pedro não é necessário dizer mais nada depois daquele golpe inadvertido, em que usou de muita habilidade, ou acertou no escuro (cf. João 18:10).

Comparando os relatos paralelos deste episódio nos quatro Evangelhos e meditando sobre os fatos ocorridos, fica evidente o quanto Jesus nos pode ensinar, mesmo em momentos os mais difíceis como este. Há duas verdades que saltam à vista imediatamente. Trata-se de recursos humanos que os discípulos de Cristo nunca devem usar. Primeiro, a violência contra outra pessoa, como Pedro fez. Segundo, a humilhante atitude de fuga diante das dificuldades, abandonando os ideais da fé cristã. Mas há também dois fatos curiosos a serem notados: Um é que não aparece o nome de Pedro nos três primeiros Evangelhos, como autor do golpe de espada que feriu o servo do Sumo Sacerdote. Só João é quem o identifica, mais de cinqüenta anos após esta ocorrência, e mais de vinte anos após terem sido escritos os outros Evangelhos. Isto deve ter acontecido por motivo de segurança a favor de Pedro. O outro fato curioso refere-se ao jovem que acompanhava os acontecimentos, envolto em um lençol. Este adolescente deve ter sido o próprio João Marcos, escritor deste Evangelho. É possível que ele tenha sido despertado do sono com a notícia da prisão de Jesus, e a sua preocupação e falta de experiência levaram-no a sair tão despreparado para uma aventura tão arriscada. De fato ele acabou entrando em apuros. Mas a sua iniciativa demonstra coragem, e a sua preocupação demonstra amor pelo Mestre. Se este jovem não era João Marcos, fica difícil explicar o motivo da inclusão do incidente na narrativa deste Evangelho, visto que os outros não fazem menção dele.  

 

V.53 - E levaram Jesus ao sumo sacerdote, e reuniram-se

           todos os principais sacerdotes, os anciãos e os escribas.

V.54 - Pedro seguira-o de longe até ao interior do pátio do sumo sacerdote

           e estava assentado entre os serventuários, aquentando-se ao fogo.

V.55 - E os principais sacerdotes e todo o sinédrio procuravam algum testemunho

           contra Jesus para o condenar à morte, e não achavam.

V.56 - Pois muitos testemunhavam falsamente contra Jesus,

           mas os depoimentos não eram coerentes.

V.57 - E, levantando-se alguns, testificavam falsamente, dizendo:

V.58 - Nós o ouvimos declarar: Eu destruirei este santuário edificado por

           mãos humanas e em três dias construirei outro, não por mãos humanas.

V.59 - Nem assim o testemunho deles era coerente.

V.60 - Levantando-se o sumo sacerdote, no meio, perguntou a Jesus:

           Nada respondes ao que estes depõem contra ti?

V.61 - Ele, porém, guardou silêncio e nada respondeu. Tornou a interrogá-lo

           o sumo sacerdote e lhe disse: És tu o Cristo, o Filho do Deus Bendito?

V.62 - Jesus respondeu: Eu sou, e vereis o Filho do homem

           assentado à direita do Todo-Poderoso e vindo com as nuvens do céu.

V.63 - Então o sumo sacerdote rasgou as suas vestes e disse:

           Que mais necessidade temos de testemunhas?

V.64 - Ouvistes a blasfêmia; que vos parece? E todos o julgaram réu de morte.

V.65 - Puseram-se alguns a cuspir nele,a cobrir-lhe o rosto, a dar-lhe murros

           e a dizer-lhe: Profetiza! E os guardas o tomaram a bofetadas.

 

De todas as partes do capítulo 14, é este parágrafo que tem maior relação com o contexto mais adiantado da narrativa. Parece de propósito que Marcos registra os acontecimentos de tal maneira que é possível verificar, no presente episódio, o cumprimento de um grande número de predições de Jesus desde o capítulo 8, e especialmente a partir do capítulo 10. Uma boa parte dos versos do presente capítulo está diretamente relacionada com passagens anteriores e algumas posteriores a elas. Depois da ceia no cenáculo, quando cantaram um hino e Jesus saiu com os discípulos para o Monte das Oliveiras em direção ao Getsêmani, nós pudemos acompanhá-lo respeitosamente nas suas aflições naquele jardim, e vimos quando chegou o traidor com a turba armada e agitada e ainda com algumas autoridades. E, prendendo-o, levaram-no, enquanto os discípulos fugiram, sendo ele seguido por um jovem envolto unicamente em um lençol. Agora o Filho do homem já está entregue nas mãos dos pecadores, cumprindo-se a profecia da parábola dos lavradores maus que agarraram o herdeiro, mataram-no e o atiraram fora da vinha, como veremos no capítulo 15.

Jesus foi levado ao Sumo Sacerdote, mais precisamente à casa de Caifás, conforme o relato de Mateus, mas, segundo o Evangelho de João ele passou primeiro pela casa de Anás, Sumo Sacerdote deposto de suas funções, mas que ainda exercia grande influência no Sinédrio. Ele interrogou Jesus e depois o enviou de mãos amarradas a Caifás que era seu genro e o Sumo Sacerdote naquele ano (cf. Mateus 22:57; João 18:12-13,24). Foi na casa deste que se reuniu previamente o Sinédrio, para tomar deliberações a respeito de Jesus. É evidente que a reunião já estava sendo preparada desde que Judas saiu, já de noite, com a turba para prendê-lo. O Sinédrio não podia tomar a decisão que tomou de condenar Jesus. Os seus poderes não eram tão amplos sob o domínio do Império (cf. João 18:31b). Só Pilatos, o governador romano, tinha autoridade para decretar a pena de morte. E, como veremos depois, ele hesitou muito antes de tomar esta decisão contra Jesus, e só o fez por coação das autoridades dos judeus e pela pressão da multidão excitada pelos líderes (cf. Marcos 15:9-15; Lucas 23:1-2; João 19:12-16). A atuação do Sinédrio devia ser apenas de reunir provas e apresentar a acusação, deixando que o julgamento fosse feito pelo governador.

Na casa de Caifás o clima devia ser de muita agitação e expectativa, porque tudo estava sendo feito de improviso e muita cousa estava em franca desobediência à lei dos judeus. Por exemplo, era vedada a reunião do Sinédrio durante a noite e no período das grandes festas. Mas eles haviam formado ali um grande tribunal de improviso. A rigor, para ser válida, a reunião legal havia de realizar-se no seu recinto oficial chamado “Pedra Lavrada”. Os que constituíam o tribunal eram setenta e uma pessoas, sendo muitos deles, fariseus.

Quanto às qualificações, alguns eram escribas ou doutores da Lei. Outros eram anciãos, idosos e respeitáveis, como os nossos senadores. E ainda os principais sacerdotes que naquela época pertenciam, sem exceção, à seita dos saduceus. O presidente era o Sumo Sacerdote Caifás.

Além das irregularidades que mencionamos, acresce o fato de que não havia nenhum motivo de acusação contra Jesus, pois não se apresentava nenhuma testemunha verdadeira. E quando apareciam algumas falsas, depondo dolosamente, o depoimento delas não era coerente. Só isto já era motivo para anular todo o julgamento. Mas Jesus permanecia em silêncio, sem nenhuma contestação. E o sumo Sacerdote, para adiantar o processo, fez uma pergunta a Jesus com a intenção de incriminá-lo, forçando-o a responder sob juramento, se ele era o Cristo, o Filho de Deus (cf. Mateus 26:63). Era proibido fazer ao réu uma pergunta como esta que podia trazer da sua própria boca a condenação. Mas Jesus não tinha motivo para negar esta verdade, e respondeu afirmativamente, acrescentando palavras que falavam da sua vitória como Messias. Foi isto que tomaram como motivo para ditar a sua sentença de morte. Outra arbitrariedade do Sinédrio foi determinar a pena no ato do julgamento e forçar a situação para que a sentença fosse cumprida o quanto antes, quando era necessário oferecer ao réu o prazo legal, proporcionando-lhe a oportunidade de defesa, na esperança de que o tribunal mudasse a decisão e anulasse a sentença. Um ato inaceitável do Sumo Sacerdote, que mostra a sua falta de princípios e falta de observação dos preceitos da lei de Deus foi rasgar as vestes, como num gesto teatral premeditado, ao ouvir o depoimento de Jesus sobre a sua filiação divina. Este gesto próprio de gentios era explicitamente condenado para o Sumo Sacerdote, ainda que num momento de indignação (Levítico 21:10).

A partir de então Jesus foi pronunciado réu de morte e passou a ser agredido pelos membros do Sinédrio que comemoravam com alegria aquela vantagem alcançada pela força. É como predisse o profeta: “Por juízo opressor foi arrebatado...” (Isaías 53:8). Junto aos membros do Sinédrio estavam os estudantes pretendentes à função de rabi, que podiam ajudar a defender o réu, porém, nunca acusá-lo. Alguns passaram a cuspir nele, a vendar-lhe o rosto e a esmurrá-lo. Também o insultavam dizendo: Se és profeta, adivinha quem te bateu. E os guardas davam tapas em seu rosto.

Do ponto de vista moral e legal o julgamento de Jesus foi uma farsa, além do que ele foi submetido a inexplicáveis abusos e zombaria. Pedro trazia bem viva na memória a lembrança do comportamento de Jesus, quando escreveu na sua primeira carta estas palavras: “pois ele, quando ultrajado , não revidava com ultraje, quando maltratado não fazia ameaças, mas entregava-se àquele que julga retamente,” (1Pedro 2:23). Jesus tinha confiança no seu triunfo final, e a sua atitude aqui se explica pelo que ele já havia afirmado anteriormente: “Por isso o Pai me ama, porque eu dou a minha vida para a reassumir. Ninguém a tira de mim; pelo contrário, eu espontaneamente a dou. Tenho autoridade para a entregar e também para reavê-la. Este mandato recebi de meu Pai” (João 10:17-18). Ele tinha certeza de que Deus haveria de ressuscitá-lo.

 

V.66 - Estando Pedro em baixo no pátio, veio uma das criadas do Sumo Sacerdote

V.67 - e, vendo a Pedro que se aquentava, fixou-o e disse:

           Tu também estavas com Jesus, o Nazareno.

V.68 - Mas ele o negou, dizendo: Não o conheço, nem compreendo o que dizes.

           E saiu para o alpendre. [E o galo cantou.]

V.69 - E a criada, vendo-o, tornou a dizer aos circunstantes: Este é um deles.

V.70 - Mas ele outra vez o negou. E pouco depois os que ali estavam  disseram a Pedro:

           Verdadeiramente és um deles, porque também tu és galileu .

V.71 - Ele, porém, começou a praguejar e a jurar:

           Não conheço este homem de quem falais!

 

 

V.72 - E logo cantou o galo pela segunda vez. Então Pedro se lembrou

           da palavra que Jesus lhe dissera: Antes que duas vezes cante o galo,

           tu me negarás três vezes. E caindo em si, desatou a chorar.

 

O julgamento de Jesus teve como objetivo eliminá-lo da nação. Isto fez que ele fosse cortado da terra dos viventes, cumprindo a profecia de Isaías 53:8.

Enquanto corria o processo na casa de Caifás, onde os membros do Sinédrio sentados em círculo, acompanhados de jovens assistentes, ouviam as testemunhas, e onde Jesus era interrogado pelo Sumo Sacerdote, passava-se do lado de fora, no pátio, outra cena que Marcos descreve neste parágrafo. Era quase de madrugada. O galo não havia cantado ainda. Pedro estava lá fora e a noite era fria. Os oficiais e os servos do Sumo Sacerdote, sentados ao redor de uma fogueira, aquentavam-se ao fogo. Pedro estava entre eles. Foi então que chegou uma das criadas, a que cuidava do portão, e olhou firme para ele. João relata que havia falado com ela para levar Pedro para dentro, pois ele vinha seguindo Jesus de longe e havia ficado do lado de fora (João 18:15-16). Ela disse a Pedro: “Tu também estavas com Jesus, o Nazareno”. Como ela o conhecia, não sabemos, mas é possível que algum dia o tivesse visto em companhia de Jesus, a quem ela chama de Nazareno, com desdém. Vendo que Pedro o negava, e com uma desculpa retirava-se para o alpendre, então passou a denunciá-lo diante dos que estavam em redor, afirmando que ele pertencia ao grupo de Jesus. E Pedro respondeu negando-o novamente. Pouco mais tarde os que ali estavam também o acusaram, reconhecendo-o como galileu por causa das suas vestes. Então ele o negou pela terceira vez praguejando e jurando que não o conhecia. Porém não blasfemou e nem praguejou contra o Mestre. Foi contra si mesmo que ele pronunciou palavras imprecatórias, talvez como: “Raios me partam, se conheço este homem”.

É possível que algumas pessoas já tenham negado Jesus de alguma forma, em situação mais fácil de superar do que aquela em que Pedro se encontrava, sem todavia se aperceberem da gravidade do problema. Mas quando alguém se coloca no lugar dele, forçosamente compreenderá todo o processo que o levou àquela tragédia, sem ter a quem apelar, à medida que as etapas iam-se sucedendo, uma após outra, sem possibilidade de retorno, até à sua queda final. Começa pelo fato dele estar tão confiante na sua própria capacidade, a ponto de desdenhar os outros discípulos, quando disse: “Ainda que todos se escandalizem, eu jamais”. Podemos entender que ele fosse sincero e que tivesse pretensões verdadeiras. Mas logo começaram as decepções e ele não se compenetrou da gravidade dos fatos, até que Jesus lançou sobre ele aquele olhar. Anteriormente ele mostrou indisciplina sobre as exigências da carne, quando adormeceu e não pode vigiar no Getsêmani, enquanto Jesus orava. Logo depois fugiu amedrontado com os outros discípulos. Agora, há pouco, ele estava seguindo Jesus de longe e, quando entrou no pátio, foi disfarçar-se entre aqueles que eram inimigos. Depois de tudo isso, como evitar a tragédia? Os caminhos já estavam preparados e o desfecho seguiu-se como lógico e necessário. Nas palavras de Alan Cole,  “a batalha contra a tentação na casa do Sumo Sacerdote tinha sido perdida muito tempo antes, pois o tempo propício para o cristão lutar contra a tentação é antes de entrar nela”.

Olhando por este prisma, só é possível fazer concessões a Pedro com base na natureza humana, como alguns querem condescender até com Judas. Mas quando Pedro se arrependeu e chorou amargamente, ele não foi absolutamente indulgente consigo mesmo. Pelo contrário, confessa ainda trinta anos depois, quando foi escrito este Evangelho, a atrocidade do seu pecado e a riqueza da graça de Deus que o reconduziu à comunhão com o Mestre. Compreender a fragilidade humana e a facilidade da queda não é tão importante quanto compreender a natureza da queda.

Com relação a Pedro qual deve ser a nossa atitude?  Tomemos por base a atitude de Jesus. Ele recebeu carinhosamente as hipotecas imaturas de fidelidade e de solidariedade até à morte daquele discípulo e alertou-o com uma profecia bucólica de que aquelas palavras careciam de garantia. E depois de tudo haver acontecido, ele mesmo tomou a iniciativa da restauração de Pedro, mandando-lhe o recado, após a ressurreição, para comparecer ao encontro marcado na Galiléia. Nestas condições não convém censurar Pedro pelo erro em que ele incorreu, mesmo porque muitos podem cometer a mesma falha em situação menos embaraçosa. Compreendendo a fragilidade humana e a facilidade de ceder a certas tentações na fase de imaturidade, devemos compreender paralelamente a necessidade de redenção, o amor de Cristo e a sua disposição de livrar-nos da condenação do pecado. Pois enquanto Pedro conseguiu livrar-se facilmente do sofrimento negando Jesus lá fora no pátio, o Filho de Deus estava sendo condenado por dizer a verdade, lá dentro da casa de Caifás. Logo em seguida, porém, o seu olhar sério, mas misericordioso, fez com que Pedro retornasse ao bom senso.

Então o galo cantou pela segunda vez.