CAPÍTULO 14
V. 1 - Dali a dois dias era a páscoa e a festa
dos pães asmos;
e os principais sacerdotes e os
escribas procuravam
como o prenderiam, à traição e o
matariam.
V. 2 - Pois diziam: Não durante a festa,
para que não haja tumulto entre o
povo.
A decisão de prender Jesus já tinha sido tomada pelos principais sacerdotes
e fariseus logo depois da ressurreição de Lázaro, quando divulgaram a ordem
para denunciá-lo, qualquer que soubesse onde ele estava. Mas agora eles haviam
decidido que era preciso matá-lo, o mais depressa possível. Só um problema os
principais sacerdotes e escribas queriam evitar. Era o tumulto que poderia
ocorrer entre o povo concentrado em Jerusalém naqueles dias de festa. A traição
foi o método pelo qual optaram para apanhá-lo da maneira mais discreta, sem
alarmar a população. Só faltava uma oportunidade para consumá-la.
Jerusalém sempre foi sujeita a caprichosas agitações populares. Ali, quem
contasse com o apoio do povo contava automaticamente com uma grande vantagem
para qualquer movimento. Os próprios exércitos romanos que eram tão bem organizados
não tinham habilidade suficiente para enfrentar os tumultos na cidade. Quando
Paulo foi preso e remetido sob custódia para Cesaréia, Lísias, comandante das
tropas romanas de Jerusalém, determinou que ele fosse acompanhado de uma
escolta constituída de duzentos soldados, duzentos lanceiros e setenta
cavaleiros, um total de quatrocentos e setenta
homens de guerra, para oferecer segurança ao apóstolo ameaçado de morte
por seus perseguidores judeus.
Jesus contava com a simpatia do povo até estas alturas do seu ministério.
Por isso podemos entender a razão dos líderes judeus estarem decididos a
realizar o atentado contra ele somente depois da páscoa, quando a cidade se
esvaziava da população flutuante de
peregrinos. Mas a disposição de Judas Iscariotes oferecer os seus serviços aos
principais sacerdotes fez com que eles reconsiderassem o assunto e, afinal,
tudo aconteceu mesmo na época determinada por Deus para o sacrifício do
Cordeiro. Cumprindo este aspecto necessário do propósito divino, ali concorriam
o Filho de Deus com a disposição de oferecer a sua própria vida, os líderes
religiosos com o desejo de matá-lo e o traidor com a decisão de entregá-lo. Os
principais implicados na trama a que se refere o primeiro verso desta passagem
são: o Sumo Sacerdote, o Capitão do Templo, os dirigentes dos vários
procedimentos litúrgicos diários e semanais, e ainda o Tesoureiro. Estes eram
os supervisores permanentes dos serviços sagrados.
Com este pressentimento de morte Marcos inicia a narrativa da paixão, que
se estende pelos capítulos 14 e 15 do seu Evangelho. Era provavelmente
quarta-feira. Faltavam dois dias para a festa da Páscoa e dos Pães Asmos. A
grande festa era a páscoa, observada com o rigor de um sábado, e tinha início
no dia 14 do mês de Nisã, que corresponde aproximadamente ao 14 de abril do
nosso calendário. A festa dos Pães Asmos era menor em importância e se estendia
por sete dias seguidos à Páscoa.
Para a grande festa que lembrava a saída de Israel do Egito e a redenção
do jugo de Faraó, eram feitos intensos preparativos. Um mês antes, as sinagogas
começavam a recordar o significado do evento. Mas nas escolas, as crianças
tinham diariamente uma lição sobre o assunto. Todos os homens que vivessem num
raio de vinte e cinco quilômetros de distância de Jerusalém eram obrigados a
comparecer às festividades . Para facilitar a marcha dos peregrinos, os
caminhos eram melhorados, e as pontes, restauradas. Todas as sepulturas à beira
do caminho eram caiadas de branco para ficarem bem visíveis, a fim de que nenhum
peregrino as tocasse. Assim eles se mantinham incontaminados e podiam
participar dos festejos. Todo cidadão israelita tinha um grande desejo na vida,
que era participar de uma ceia da Páscoa em Jerusalém. Por isso, lá chegavam
judeus peregrinos do mundo todo em que havia colônias israelitas. Betânia e
Betfagé funcionavam como alojamentos auxiliares de Jerusalém, porque não havia
lugar para tanta gente dentro das muralhas nas épocas de festa. E a hospedagem
era gratuita.
A pedido de um governador da Palestina, por volta do ano 65 DC, o Sumo
Sacerdote forneceu um relatório sobre o número de sacrifícios feitos no Templo
naquela Páscoa, com o fim de estimar a população existente na cidade durante as
festas. A informação diz que foram sacrificados duzentos e sessenta e cinco mil
e quinhentos cordeiros. Mas a Lei estabelecia que cada cordeiro devia ser
oferecido por um grupo não menor do que dez pessoas. Portanto havia pelo menos
uns três milhões de almas na Páscoa daquele ano, na cidade de Jerusalém.
Quando o povo reunido para a festa lembrava com euforia a sua libertação
do jugo egípcio, automaticamente os seus ânimos se inflamavam, e ressurgia o
desejo ardente de libertação do jugo romano. Por isso as autoridades imperiais
andavam sempre alertas, e Jerusalém recebia em períodos de festa um reforço
especial de tropas que vinha de Cesaréia, a capital romana da Judéia,
residência de governadores e procônsules, portanto, uma cidade bem guarnecida
de forças militares.
Prender Jesus nessa época significava um grande risco de insurreição
popular, com imprevisíveis conseqüências. Isto era o que temiam os principais
sacerdotes e escribas. Então queriam adiar os acontecimentos. Mas os últimos
momentos da vida do Filho de Deus entre os homens e o seu êxodo, ocorreram na
Páscoa, em Jerusalém, na presença de judeus provenientes dos lugares mais
remotos da Terra, que vinham para relembrar o livramento do povo da escravidão
do Egito.
Ali mesmo, todos puderam tomar conhecimento do sacrifício daquele que
poucos compreenderam ser o Cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo.
V. 3 - Estando ele em Betânia, reclinado à mesa,
em casa de Simão, o leproso,
veio uma mulher trazendo um vaso de
alabastro com preciosíssimo
perfume de nardo puro; e, quebrando
o alabastro,
derramou o bálsamo sobre a cabeça de
Jesus.
V. 4 - Indignaram-se alguns entre si, e diziam:
Para que este desperdício de
bálsamo?
V. 5 - Porque este perfume poderia ser vendido
por mais de trezentos denários,
e dar-se aos pobres. E murmuravam contra ela.
V. 6 - Mas Jesus disse: Deixai-a; por que a
molestais?
Ela praticou uma boa ação para
comigo.
V. 7 - Porque os pobres sempre os tendes
convosco e, quando quiserdes,
podeis fazer-lhes bem, mas a mim,
nem sempre me tendes.
V. 8 - Ela fez o que pode: antecipou-se a
ungir-me para a sepultura.
V. 9 - Em verdade vos digo: onde for pregado em
todo o mundo o evangelho,
será também contado o que ela fez,
para memória sua.
Era quarta feira da semana da paixão e Jesus encontrava-se em Betânia
tranqüilamente na casa de Simão, o leproso, onde foi honrado com uma ceia. Esta
é a mesma casa de Marta, de sua irmã Maria e de seu irmão Lázaro, a quem Jesus
havia ressuscitado, havia menos de um mês. João registra a sua presença dizendo
que ele era um dos que estavam à mesa com Jesus
(João 12:1-2).
Naquela época o costume era de comer recostado a um divã que tinha uma
das pontas encostada à mesa. A pessoa reclinava-se com o lado esquerdo sobre o
divã, e com a mão direita pegava os alimentos da mesa. Os pés ficavam livres na
outra extremidade do divã. Esta era uma etiqueta que havia sido introduzida
pelos romanos na Palestina. E segundo a etiqueta local, o dono da casa recebia o
hóspede com beijos e derramava algumas gotas de perfume sobre ele quando
chegava, ou quando se punha à mesa. Estando Jesus reclinado sobre o divã, veio
uma mulher com um vaso de alabastro cheio de perfume de nardo, e derramou todo
o conteúdo do frasco sobre a sua cabeça e também sobre os seus pés.
O alabastro é uma pedra mole e translúcida, muito parecida com o mármore.
Quando ela é cortada em peças de fina espessura, torna-se quase transparente, e
os veios naturais da pedra destacam-se, formando desenhos muito bonitos. Com
alabastro fazem-se copos, vasos, candeeiros e outros objetos. Foi um vaso deste
material que a mulher quebrou para derramar sobre Jesus o perfume de nardo.
Este era um bálsamo de aroma muito agradável, extraído de uma árvore natural do
norte da Índia, que chegava à Palestina importado em frascos lacrados de
alabastro. Era um perfume caro, e a quantidade que estava naquele frasco era
cerca de trezentos e trinta gramas, ou seja, mais do que um copo de tamanho
normal. O seu preço era superior a trezentos denários, isto é, superior a
trezentas diárias de um trabalhador comum, o que equivale atualmente a mais de
dez mil Reais. A reação de muitos dos presentes, inclusive dos discípulos, foi
contrária à atitude da mulher. Alegavam que aquele perfume poderia ter sido
vendido, e o dinheiro repartido aos pobres. João informa que o dedo de Judas
estava nesse protesto. Ele era cobiçoso e ladrão, pois roubava da bolsa dos
apóstolos que estava aos seus cuidados. Por isso ele desejava oportunidades
como aquela para fazer dinheiro (cf. João 12:4-6).
Quanto a Jesus, ele aprovou plenamente a ação daquela mulher, dizendo que
ela fez uma boa obra para com ele, e fez o que estava dentro das suas posses.
Os pobres sempre haverá e qualquer um pode ajudá-los quando quiser, mas a
oportunidade que ele oferecia ali era única, e aquela mulher não a deixou
passar. Foi uma bela atitude que certamente representava a sua convicção de que
ele é o Ungido de Deus, o Messias. Por isso ela o ungiu ali. Aquele era também
um ato profético que só Jesus reconheceu, porque ela antecipou a unção do seu
corpo para o sepultamento que viria a ocorrer dentro de dois dias. Naquele
tempo costumava-se lavar o morto antes de sepultá-lo, e depois, ungi-lo com
perfume. Nesta oportunidade o frasco era quebrado e colocado na sepultura ao
lado do morto. O ato de bondade desta mulher foi um dos últimos dirigidos a
Jesus, antes da sua morte, sendo comparável ao ato de adoração dos magos que
lhe ofereceram presentes caríssimos de ouro, incenso e mirra (Mateus 2:11). Em
nenhum dos dois casos houve desperdício. Uma das razões por que este episódio
encontra-se registrado nos Evangelhos é a promessa de Jesus de que a ação
daquela mulher seria contada no mundo todo, onde quer que fosse pregado o
evangelho, para que ela fosse lembrada. O seu nome é Maria (cf. João 12:3). É a
irmã de Marta e de Lázaro. A mesma que escolheu a boa parte, isto é, estar
junto de Jesus (cf. Lucas 10:38-42). Esta parte nunca será retirada daqueles
que o buscam na intimidade, com sinceridade.
Em contraste com a reprovação de alguns presentes, Jesus viu a atitude de
Maria, não com olhos voltados para o ato em si ou para o seu valor financeiro,
mas para o amor que ela demonstrou. Diante disso, a quantidade de dinheiro
perde o significado. É como a oferta da viúva pobre, cujo valor espiritual era
maior do que o das outras ofertas. Neste exemplo de Maria Jesus resolve uma
dúvida de muitos crentes: quando alguém dispõe de uma boa quantidade de
dinheiro ou de bens e decide usá-lo na obra de Deus, que deverá fazer:
distribuir aos pobres, doar a instituições de caridade e assistência social ou
empregar na obra do evangelho através da igreja que é o corpo de Cristo? A
resposta é : a igreja, em primeiro lugar. Os pobres sempre é possível ajudar,
quando se deseja, porque eles sempre existirão.
Para Judas deve ter sido uma grande decepção ver o Mestre aprovar o uso
de um perfume tão caro, de modo considerado por alguns como desperdício. Se
continuasse assim, a bolsa apostólica estaria sempre desfalcada, sem nenhuma
oportunidade para ele que era ladrão, avarento e cobiçoso de dinheiro. Foi
nesta crise de opiniões que Judas tomou a decisão de vender os seus serviços
aos sacerdotes, entregando-lhes Jesus.
V.10 - E Judas Iscariotes, um dos doze, foi ter com os
principais sacerdotes, para lhes
entregar Jesus.
V.11 -
Eles, ouvindo-o, alegraram-se e lhe prometeram dinheiro;
nesse meio tempo buscava ele uma boa
ocasião para o entregar.
A ameaça de morte que no início deste capítulo estava do lado de fora,
manifesta-se agora no círculo mais próximo de Jesus, criando a oportunidade que
procuravam os principais sacerdotes e escribas de prendê-lo à traição. A
negociação é relatada com poucas palavras nos três Evangelhos Sinóticos. Mateus
acrescenta que o preço da traição foi trinta moedas de prata (Mateus 26:15).
Isto confirma a profecia de Zacarias 11:12. Este era também o valor da
indenização pela morte de um escravo, estabelecida em Êxodo 21:32. Mas Jesus
veio realmente para servir o homem no propósito de Deus como “servo”, palavra
assimilada muitas vezes a “escravo” na linguagem bíblica.
Embora seja insignificante o valor das trinta moedas de prata, o gesto de Jesus entregar a sua vida por nós
tem um preço inestimável que não podemos pagar eternamente. Cabe-nos aceitá-lo
pela fé, para a nossa própria salvação.
V.12 - E no primeiro dia dos pães asmos, quando se fazia
o sacrifício do cordeiro pascal,
disseram-lhe seus discípulos:
Onde queres que vamos fazer os
preparativos para comeres a páscoa?
V.13 -
Então enviou dois dos seus discípulos, dizendo-lhes: Ide à cidade,
e vos sairá ao encontro um homem
trazendo um cântaro de água;
V.14 -
segui-o e dizei ao dono da casa onde ele entrar, que o Mestre pergunta:
Onde é o meu aposento no qual hei de
comer a páscoa com os meus discípulos?
V.15 - E
ele vos mostrará um espaçoso cenáculo mobiliado e pronto;
ali fazei os preparativos.
V.16 -
Saíram, pois, os discípulos, foram à cidade e,
achando tudo como Jesus lhes havia
dito, prepararam a páscoa.
No início deste capítulo 14 do Evangelho de Marcos encontramos registrado
o plano dos líderes judeus para tirar a vida de
Jesus, prendendo-o traiçoeiramente. Esta breve introdução relaciona todo
este capítulo com aquilo que Jesus vinha anunciando sobre os seus sofrimentos,
desde o capítulo 8, verso 31, com estas palavras: “Então começou ele a
ensinar-lhes que era necessário que o
Filho do homem sofresse muitas cousas, fosse rejeitado pelos anciãos, pelos
principais sacerdotes e pelos escribas, fosse morto e que depois de três dias
ressuscitasse”.
Mas aquela introdução é também a porta que conduz aos acontecimentos
finais do “Evangelho de Jesus Cristo, Filho de Deus”, e que Marcos registra
cuidadosamente, para esclarecer tudo o que ele vinha profetizando sobre o seu
futuro, incluindo a sua morte e ressurreição. A unção em Betânia fica bem
explicada neste contexto, quando ele esclarece que estava sendo preparado para
a sepultura. E desde agora os acontecimentos se desenrolam rapidamente até o
final da narrativa. Se antes Jesus vinha prevenindo os discípulos de maneira
discreta sobre o que estava para acontecer, agora ele estava falando de modo
claro, dentro do próprio contexto dos acontecimentos, desde que os principais
sacerdotes e fariseus deram ordem para, se alguém soubesse onde ele estava,
denunciá-lo, a fim de o prenderem. A intensificação dos conflitos com os
adversários devida aos fatos ocorridos na segunda e na terça feira no Templo
também apontam para uma visível mudança da situação.
Nestas condições, a boa ação de Maria ao ungir Jesus é digna de memória
no evangelho, por contrastar frontalmente com a atitude daqueles que se
indignaram, alegando desperdício do perfume. Mas, derramando-o sobre a sua
cabeça, ela estava procedendo à unção do
Rei, porque certamente o reconhecia como tal. O apóstolo João informa que os
discípulos só vieram a compreendê-lo assim, depois da ressurreição, quando ele
foi glorificado (João 12:15-16). Ele até coloca a unção de Jesus por Maria no
seu Evangelho, antes dele ter entrado como Rei em Jerusalém, montado no
jumentinho. Ele apresenta uma ordem lógica dos fatos que podemos compreender
assim:
1 - A unção
do Rei
2 - A entrada
triunfal do Rei em Jerusalém (já ungido)
3 - A
glorificação do Rei (na ressurreição)
Portanto, a boa obra de Maria está relacionada com um dos pontos
fundamentais para a pregação do evangelho, que é a visão de Jesus como Rei.
Aquela mulher tinha consciência de muitos aspectos dos ensinos dele, porque
sentava-se aos seus pés, para ouvi-lo com atenção (cf. Lucas 10:38-42).
Jesus tinha consciência de que a sua morte e os acontecimentos
relacionados com ela deviam ocorrer na Páscoa. Por isso ele tomou todas as
precauções necessárias para cumprir as
profecias pertinentes aos fatos: fez preparar o jumentinho (Zacarias 9:9) e
mandou providenciar as espadas (Isaías 53:12; Lucas 22:36-37). Além disso teve
o cuidado de entrar discretamente em Jerusalém para a última ceia, a fim de cumprir
cabalmente o seu ministério, antes que chegasse aquela sua hora. Isto fica
muito evidente no relato dos Evangelhos.
Ele tinha tantas cousas para lhes ensinar naquela noite, que o Evangelho
de João conta com cinco capítulos, de um total de vinte e um, dedicados
exclusivamente a estes assuntos. São os de números treze até o dezessete,
inclusive.
Era o primeiro dia dos pães asmos, quando Jesus ordenou a dois de seus
discípulos que fossem à cidade preparar a Páscoa. O pão asmo é pão sem
fermento, do tipo daquele que foi assado para ser comido às pressas no dia da
saída do Egito, conforme instruções de Êxodo 12:14-20, quando foi celebrada a
primeira Páscoa. Agora, quando os judeus faziam os preparativos para a festa, a
primeira medida era retirar das casas todo fermento, o que aliás se fazia
segundo um ritual cerimonioso acompanhado de orações, pois uma das idéias
relacionadas com o fermento na concepção bíblica é a de podridão ou de
corrupção. Também como preparativo era feito o sacrifício do cordeiro para ser
comido, assado ao fogo. O seu sangue lembrava a proteção de Deus sobre os
pimogênitos de Israel quando o Anjo da Morte passou sobre o Egito. Outras
iguarias que constavam dos preparativos para a refeição pascal eram um molho
feito de ervas amargas para lembrar as amarguras da escravidão do Egito, uma
pasta feita de maçãs, tâmaras, romãs e nozes, com pedacinhos de canela que
lembravam a massa dos tijolos com palha de trigo, fabricados pelos hebreus
quando lá eram escravos. Eram usados
também quatro cálices grandes de vinho misturado com água de cerca de meio
litro cada um, que se bebia em momentos diferentes da celebração, os quais
lembravam as quatro promessas de Deus contidas em Êxodo 6:6-7. Assim, cada
detalhe destes preparativos lembrava algum fato relacionado com a libertação do
povo da escravidão do Egito.
Era também durante o período destas festividades que o Filho de Deus
haveria de libertar o homem da escravidão do pecado, e esta é a última Páscoa
da História da Redenção. Por isso era muito importante que Jesus a celebrasse
com seus discípulos. Convém observar que nesta celebração não se faz menção do
cordeiro pascal tradicional, certamente porque o Cordeiro de Deus estava
presente ali, para ser sacrificado.
O cenáculo em que foi feita a comemoração provavelmente ficava na casa
dos pais de João Marcos, o escritor deste Evangelho. Ali também os discípulos
continuaram a reunir-se após a ascensão de Jesus, enquanto aguardavam a chegada
do Espírito Santo (Atos 1:13). Mais tarde este local parece ter-se tornado
ponto de reunião dos irmãos em Jerusalém (Atos 12:12).
V.17
- Ao cair da tarde foi com os doze.
V.18 -
Quando estavam à mesa e comiam, disse Jesus:
Em verdade vos digo que um dentre
vós, o que come comigo, me trairá.
V.19 - E
eles começaram a entristecer-se e a dizer-lhe, um após outro:
Porventura sou eu?
V.20 -
Respondeu-lhes:É um dos doze, o que mete comigo a mão no prato.
V.21 -
Pois o Filho do homem vai, como está escrito a seu respeito;
mas ai daquele por intermédio de
quem o Filho do homem
está sendo traído. Melhor lhe fora
não haver nascido!
O assunto do capítulo 14 que estamos estudando é a traição que fizeram
contra Jesus. Porém este tema já tinha sido insinuado no capítulo 13, quando
ele disse: “Um irmão entregará à morte outro irmão e o pai ao filho...”. A idéia desta “entrega” entre parentes
próximos alcança até a traição dentro do círculo mais íntimo dos discípulos.
Depois de anunciar a intenção dos principais sacerdotes e escribas de
prenderem Jesus à traição logo no
início, o capítulo 14 também relata a negociação de Judas com os líderes
religiosos e, mais adiante, o aviso de Jesus de que um dos doze iria traí-lo.
Depois, narra a sua prisão e entrega aos principais sacerdotes, anciãos e
escribas.
Os preparativos para a Páscoa foram feitos na quinta-feira, durante o
dia. Agora estamos no cair da tarde, quando o sol se põe, e começa a
sexta-feira para os judeus. Os primeiros acontecimentos que se deram durante a
celebração da ceia pascal são narrados neste parágrafo, dos versos 17 ao 21.
A consciência que Jesus tinha de que um dos doze haveria de traí-lo é
posta às claras nos quatro Evangelhos. Todavia não é fácil dizer a partir de
quando ele percebeu isto. Mas bem cedo ele já afirmava: “Não vos escolhi em
número de doze? Contudo um de vós é diabo” (João 6:70). Ele também
demonstrou a sua aguçada psicologia e o seu poder sobrenatural de ver o que
está escondido no coração do ser humano, no episódio da cura do paralítico em
Cafarnaum, quando denunciou os escribas por arrazoarem em seus corações,
acusando-o de blasfemar, ao dizer que os pecados daquele homem estavam
perdoados. No Evangelho de João encontramos esta afirmação do apóstolo: “E
não precisava de que alguém lhe desse testemunho a respeito do homem, porque
ele mesmo sabia o que era a natureza humana” (João 2:25). E chegando ao
final dos acontecimentos, entendemos que Jesus já sabia há mais tempo quem era
o traidor. Ainda que ele o soubesse desde o início, havia muitas razões para
que o seu nome não fosse revelado. Primeiramente ele amava aquele discípulo, e
por meio desse amor deve ter tentado poupá-lo do risco dele desencaminhar-se,
procurando conservá-lo sempre ao seu lado. A sua avareza era conhecida, pois
ele roubava dinheiro da bolsa. Mas, ao invés de expulsá-lo do colégio
apostólico, Jesus foi paciente com ele e tratou-o com especial deferência até o
último instante, quando o colocou em lugar de honra à mesa da ceia pascal, onde
comeram juntos do mesmo prato, reclinados lado a lado, um do outro. João relata
que Jesus lhe ofereceu um bocado da sua própria mão, gesto que demonstrava sua
amizade e consideração por ele. Mas, ao
contrário do que se poderia esperar, a reação de Judas foi fatal, porque deu
lugar ao diabo que entrou nele naquele momento (João 13:26-27). Era o ódio que
se manifestava nele por ver frustrados os seus projetos de enriquecimento.
Aquele caso do perfume derramado deixou-o, com certeza, muito revoltado.
Possivelmente a idéia de entregar o Mestre por dinheiro apareceu mediante a
oportunidade oferecida pelos adversários pedindo que o denunciassem, depois da
ressurreição de Lázaro e, mais tarde, resolvendo prendê-lo à traição. Mas Jesus
tentou segurar as rédeas o quanto pode, até poucas horas antes de consumar-se a
sua prisão. Daí por diante entendemos que não havia mais nada a fazer, como
relata João no seu Evangelho, quando Jesus disse: “O
que pretendes fazer, faze-o depressa”.
Foi só neste momento que os discípulos ficaram sabendo quem era o
traidor. Se Jesus o tivesse identificado com antecedência, os outros o
discriminariam e poderiam até mesmo tentar usar de força ou de violência para
impedir a concretização do seu plano.
isto não convinha, até porque era necessário que se cumprissem as
Escrituras a respeito deste fato. Portanto era este o momento exato para Jesus
trazer esta revelação.
No Salmo 41:9 encontra-se o seguinte testemunho profético: “Até o meu
amigo íntimo, em quem eu confiava, que comia do meu pão, levantou contra mim o
calcanhar”. Daqui podemos deduzir que os sentimentos de Jesus para com
Judas eram os mais nobres possíveis, a saber, de amizade íntima, como o de
alguém que traz o amigo no coração; de confiança, como o de alguém que não
espera traição; e de cuidado, como o de alguém que está disposto a repartir com
o outro o seu pão. Com base nisto podemos imaginar a agonia que se passava no
íntimo de Jesus naquela ceia. Mas o sentimento de Judas para com Jesus era
extremamente contrário e podemos dizer que, em retribuição a tudo isso, ele se
arremeteu literalmente contra o seu Mestre com um chute, tal qual um animal que
dá um coice no seu tratador. Ele recusou o pão que desceu do céu.
Muitos questionam a razão por que Jesus o escolheu como apóstolo. Com
certeza foi por um gesto de amor. Ele deve ter-se aproximado de Jesus entre
muitos outros seguidores. Se houvesse alguma segunda intenção nesta sua atitude
de aproximação, talvez interesses
materiais, é possível entender que só o Mestre podia ajudá-lo a eliminar do
coração esta maldade. Vendo então a sua grande carência, ele lhe abriu a
oportunidade, por amor. Mas Judas devia ter tomado a cruz de Cristo que
significa submeter-se ao propósito de Deus, renunciando a sua própria vida, seu
caráter, sua personalidade, atentando para esta oportunidade, como quem recebe
de Deus a mais valiosa proposta de amor, porque aí está a salvação. Cabe ao
homem recusar ou aceitar a cruz que o próprio filho de Deus carregou. Diante
dela cada um deve tomar uma definição que vai decidir a sua própria sorte.
Judas endureceu o coração deliberadamente diante da proposta divina que revelou
quem ele era. Este não é o caso dele somente. É de todo o que rejeita a
pregação do evangelho, diante do qual todo ser humano se manifesta ou para a perdição,
ou para a salvação, recusando-o ou aceitando-o.
Mas ainda há aqueles que têm dúvidas sobre o caso de Judas,
considerando-o como um injustiçado. Assim, querem responsabilizar a Deus pelo
destino desse criminoso. Pela justiça de Deus a sua condenação é tão certa e
tão grande que Jesus afirma que seria melhor ele não ter nascido. Pelo fato das
Escrituras anunciarem de antemão o que haveria de acontecer, Deus não é
absolutamente responsável pelos atos do traidor. Deus conhece o presente, o passado e o futuro. Ele
sabe o que qualquer um vai praticar em qualquer tempo. Por isso ele pode
anunciar previamente os maus desígnios e as más ações de qualquer ser humano,
sem contudo forçar a situação para que os fatos aconteçam. Foi o próprio Judas
quem se manifestou traidor. Por causa da sua cobiça colocou no coração a
pretensão de entregar Jesus e arbitrou livremente fazê-lo depressa. A revelação
antecipada destes acontecimentos está dentro do divino propósito de Redenção,
em benefício dos que devem ser salvos, dando-lhes oportunidade de confrontar os
fatos e de tomá-los como exemplo. Assim como Judas, há muitos outros traidores
na história da igreja, que terão o mesmo destino. São todos réus de morte, e
nenhum é alvo de injustiça da parte de Deus. Jesus é o exemplo análogo em
sentido oposto. As Escrituras já anunciavam o seu fim, como ele mesmo diz: “...o
Filho do homem vai, como está escrito a seu respeito...” Mas não foi Deus quem o obrigou a morrer por
causa das Escrituras. Ele veio de livre e espontânea vontade (cf. Hebreus
10:7-9). Foi por conhecer o propósito do coração do Filho que Deus pode
anunciá-lo antecipadamente nas Escrituras.
Resumindo: Deus conhecia Judas antecipadamente pelo seu mau propósito e
conhecia também Jesus pelo seu bom propósito. Tudo foi anunciado
antecipadamente, mas cada um decidiu livremente a sua própria sorte. Judas
recebeu condenação eterna e Jesus recebeu glória, domínio, honra e poder pelos
séculos dos séculos.
V.22 - E,
enquanto comiam, tomou Jesus um pão e, abençoando-o,
o partiu e lhes deu, dizendo:Tomai, isto
é o meu corpo.
V.23 - A
seguir, tomou Jesus um cálice e, tendo dado graças,
o deu aos seus discípulos; e todos
beberam dele.
V.24 -
Então lhes disse: Isto é o meu sangue, o sangue da
[nova] aliança, derramado em favor
de muitos.
V.25 - Em verdade vos digo que jamais
beberei do fruto da videira,
até aquele dia em que o hei de beber, novo, no
reino de Deus.
V.26 - Tendo cantado um hino, saíram para o
Monte das Oliveiras.
A instituição
da Ceia do Senhor ocorreu na quinta-feira, durante a noite anterior à
crucificação. Segundo o calendário dos judeus já era sexta feira, visto que
para eles o dia começa ao por do sol, cerca das 6 horas da tarde.
A celebração da Páscoa
Judaica era uma cerimônia que se realizava em várias etapas intercaladas com
orações. Para o judeu ela nunca poderá transformar-se em um ritual. É sempre
uma comemoração do poder e da misericórdia de Deus. Um estudioso da Bíblia
descreve os atos desta cerimônia comemorativa do seguinte modo:
Primeiro: O chefe da família tomava o cálice chamado cálice da bênção, e orava
pelos alimentos, santificando-os para aquela cerimônia. Em seguida todos bebiam
dele.
Segundo: A pessoa que ia oficiar a comemoração lavava as mãos por três vezes.
Terceiro: Folhas de salsa ou de alface eram molhadas em uma vasilha contendo
água salgada, o que era um pequeno aperitivo da festa para cada um comer. A
folha de salsa representava o hissopo usado para aspergir o sangue do cordeiro
nos umbrais das portas no Egito. A água salgada representava as lágrimas
derramadas na terra da escravidão, e também o mar vermelho que se abriu para o
povo passar com segurança.
Quarto: Com ações de graça partia-se o pão asmo chamado pão da aflição, que
era disposto sobre a mesa em três
círculos, fazendo lembrar que, como escravos, eles nunca tiveram um pão inteiro
na terra do pecado, mas somente pedaços.
Quinto: Era feita a narrativa da história da libertação. Neste ato a pessoa
mais nova presente perguntava qual a razão deste dia ser diferente de todos os
outros. Então o chefe da casa respondia
com a narração.
Sexto: Eram cantados os salmos de louvor de números 113 e 114, que fazem
parte do Hallel, constituído dos salmos 113 até o 118, inclusive.
Sétimo: Era bebido o vinho do segundo cálice, chamado cálice da proclamação ou
da explicação.
Oitavo: Todos os presentes procediam à lavagem das mãos, preparando-se para a
ceia pascal.
Nono: Eram dadas ações de graça com as seguintes palavras: Bendito és tu, ó
Senhor, que fazes brotar da terra o fruto. Bendito és tu, ó Senhor, que nos
santificaste com os teus mandamentos e nos ordenas comer pão sem fermento.
Nesta oportunidade era distribuído o pão asmo.
Décimo: Era colocado um pouco de ervas amargas entre os pedaços do pão asmo
que se comia depois de passá-lo por um molho feito de maçãs, tâmaras, nozes e
romãs, que lembrava o tijolo fabricado pelos hebreus no Egito.
Décimo primeiro: Era o ato da refeição propriamente dita, em
que se devia comer todo o cordeiro assado ao fogo.
Décimo segundo: Todos lavavam novamente as mãos.
Décimo terceiro: Era comido todo o restante do pão asmo.
Décimo
quarto: Era feita uma nova oração de ações de graça contendo o pedido da
vinda de Elias, como precursor do Messias. Agora se tomava o vinho do terceiro
cálice, chamado cálice das ações de graça, que dá origem à expressão
“eucaristia”. Sobre este cálice eram pronunciadas estas palavras de bênção:
Bendito és tu, Senhor nosso Deus, Rei do Universo, que criaste o fruto da
videira.
Décimo quinto: Cantava-se a segunda parte do Hallel, isto
é, os salmos de números 115 até 118.
Décimo sexto: Bebia-se o vinho do quarto cálice e
cantava-se o salmo 136, o grande Hallel.
Décimo sétimo: Eram feitas mais duas orações, com que se
encerrava a celebração.
De tudo isto, o que
recebemos como ordenança de Jesus para a celebração da Santa Ceia cristã foi:
1 - Fazer a celebração em memória dele
(Lucas 22:19; 1Coríntios 11:24-25).
2 - Tomar o pão, dar graças e repartir entre
os discípulos, para todos comerem dele.
3 - Tomar o cálice, dar graças e dar aos
discípulos, para todos beberem dele.
O pão sem fermento
representa o corpo santo de Cristo que foi oferecido na cruz. O cálice, ou
seja, o seu conteúdo, representa o sangue da nova aliança, que ele derramou na
cruz, horas depois da instituição da ceia. Esta nova aliança de Deus com os
homens, que tem Jesus por mediador é bem diferente daquela feita com a nação de
Israel no passado. A primeira foi selada com sangue de animais e foi completada
com a Lei de Moisés. A segunda, a nova aliança, é individual, para todo homem,
independentemente da nacionalidade. A questão vital é a fé em Cristo como
mediador, a saber, aquele que pela sua obra de vida, morte e ressurreição, é
capaz de colocar-nos na presença de Deus. Nesta aliança a Lei de Moisés é
substituída pelo Espírito Santo que é capaz de imprimir nas nossas mentes e de
inscrever nos nossos corações as leis de Deus (Hebreus 8). Isto leva-no à
obediência que agrada a Deus, obediência por amor, bem diferente daquela
obediência legal, resultante de um compromisso com a Lei. O sangue da nova
aliança é o sangue de Cristo e o seu evangelho é a Lei Perfeita ou Lei da
Liberdade (cf. Tiago 1:25).
É sumamente importante
compreender o simbolismo contido no pão e no fruto da videira como símbolos
representativos do corpo e do sangue de Jesus, o mediador da nova aliança.
Israel, como nação, a videira plantada por Deus, desde cedo demonstrou não ter
qualificações para servir de mediador da Nova Aliança devido às suas muitas
falhas. O remanescente fiel da nação, apesar de ser chamado fiel, era também
humano e, portanto, imperfeito. Os próprios discípulos de Jesus afastaram-se na
hora da sua morte. As mulheres que o seguiam observavam-no de longe. Ele estava
só na hora da redenção, como único e digno representante de Israel. Ele é o
verdadeiro produto da videira plantada por Deus, e o seu sangue é a mais
elevada expressão do fruto dessa videira, porque resume a sua vida e obra. A
fim de consumar o sacrifício, ele teve que encarnar, recebendo o corpo,
representado pelo pão, que no final da sua vida terrena, ele ofereceu na cruz .
Portanto os elementos da ceia, o pão e o fruto da videira, têm um elevadíssimo
significado espiritual.
No verso 25 Jesus
afirma a certeza da vinda do reino de Deus e a sua participação na ceia quando
isto acontecesse. Portanto podemos estar certos de que ele está presente e toma
parte desta comemoração toda vez que a igreja se reúne para celebrar a sua
morte. Pois, em Pentecoste, o reino de Deus manifestou-se poderosamente no
estabelecimento da igreja (cf. Marcos 9:1).
A ceia tem também o
sentido de esperança da volta de Cristo, como Paulo escreve: “Porque todas as vezes que comerdes este pão
e beberdes o cálice, anunciais a morte do Senhor, até que ele venha” (1Coríntios 11:26). A celebração da ceia no
primeiro dia da semana, com utilização do pão asmo, foi orientação do Espírito
Santo para a igreja primitiva (Atos 20:7; 1Coríntios 5:8).
V.27 - Então lhes disse Jesus: Todos vós vos
escandalizareis
porque está escrito:
Ferirei o pastor e as ovelhas
ficarão dispersas.
V.28 - Mas, depois da minha ressurreição,
irei adiante de vós para a Galiléia.
V.29 - Disse-lhe Pedro: Ainda que todos se
escandalizem, eu jamais!
V.30 - Respondeu-lhe Jesus: Em verdade te
digo que hoje, nesta noite,
antes que duas vezes cante o galo, tu me negarás três vezes.
V.31 - Mas ele insistia com mais veemência:
Ainda que me seja necessário
morrer contigo, de nenhum modo te negarei. Assim diziam todos.
Depois das
comemorações no cenáculo e de um prolongado período de importantes instruções
aos discípulos, de acordo com o Evangelho de João, Jesus saiu com eles, altas
horas da noite, em direção ao Monte das Oliveiras, com destino ao Jardim do
Getsêmani. Foi antes de chegar a este lugar que se passou a cena descrita por
Marcos neste parágrafo. Os prognósticos registrados aqui entre os últimos do
ministério de Jesus não são nada animadores. Isto porque a crise iniciada entre
os discípulos durante a unção em Betânia por causa do perfume derramado e que
se manifestou violentamente em Judas deverá atingir em breve todos os outros
discípulos, conforme Jesus está prevenindo. Pedro, aquele que o seguia mais de
perto, será o primeiro a negá-lo literalmente, apesar das suas insistentes
afirmações em contrário. Mas os outros também o negariam com suas atitudes, apesar de hipotecarem diante
do Mestre, juntos com Pedro, a corajosa intenção de defendê-lo até à morte.
Jesus, porém, não se
deixou abalar por isso. Ele suportou destemidamente, desde o início do seu
ministério, todas as condições adversas criadas pelos inimigos, os
representantes da religião estabelecida tradicionalmente. Agora ele enfrenta
com a mesma serenidade a traição por parte de um dos seus íntimos. E ainda está
disposto a encarar os próximos acontecimentos até à morte na cruz, confortando
os discípulos através das Escrituras, até mesmo quanto ao desprezo que eles lhe
votariam. A promessa de um futuro encontro na Galiléia era ao mesmo tempo um
estímulo para que eles não perdessem as esperanças quando debandassem, e um
compromisso de perdão ao ato de o abandonarem no momento em que o apoio deles
era mais oportuno e bem-vindo.
Quanto aos discípulos,
mais tarde eles entenderam que até mesmo isso cooperou no processo do seu
amadurecimento, pois não é sem razão que Marcos registra aqui estas
reminiscências de Pedro. Mas Jesus estava bem consciente disto porque, ligada à
profecia do ferimento do pastor e da dispersão das ovelhas de Zacarias 13:7,
está a outra também de Zacarias 13:9 que diz: “Farei passar a terceira parte pelo fogo, e a purificarei, como se
purifica a prata, e a provarei, como se prova o ouro; ...” A atitude de Pedro agora é muito semelhante
àquela de quando ele reprovou Jesus ao predizer os seus sofrimentos, morte e
ressurreição (Marcos 8:31). A sua afirmação ao dizer que jamais se
escandalizaria mesmo que os outros se escandalizassem é tão incisiva e de tanta
autoconfiança, a ponto de insinuar que Jesus dependia dele. Com base nisto
podemos entender por que ele sacou da arma e cortou a orelha do soldado na hora
da prisão de Jesus. O sentimento deste discípulo todavia não é para comparar
com o do traidor. O pescador não abrigava ódio em seu íntimo. Ele pode ter sido
acometido de medo da situação ao encará-la de frente. O que não se pode deixar
de reconhecer é que ele amava o Mestre, apesar das fraquezas que depois
superou, embora envergonhado.
A intenção de Marcos
ao descrever estes fatos não é por em evidência o anúncio do fracasso de Pedro,
mas a fraqueza de todos os discípulos. Certamente eles ainda eram portadores da
dureza de coração de que Jesus tratou no capítulo 8, e que não lhes permitia
compreender os fatos e nem as palavras do Mestre. Afora tudo isto, eles também
deviam ter ambições como Tiago e João, isto é, de ocupar lugar de destaque no
reino do Messias. E não é descartável a hipótese de sentirem medo das
autoridades, porque na hora da prisão todos fugiram.
Desde o início do
capítulo 14 Marcos parece transformar a narrativa numa espécie de funil que
conduz a atenção do leitor rapidamente para o desfecho da história. A unção de
Jesus, o pacto da traição, a indicação do traidor e o aviso a Pedro são
episódios que, juntamente com os dois que serão relatados em seguida, levam o
assunto ao ponto de maior suspense que é a entrega de Jesus. Até a palavra
“entrega” foi escolhida com muita propriedade, sendo a palavra chave deste
capítulo.
E o próximo quadro
pode ser descrito pela idéia de que “a
hora se aproxima”.
V.32 - E foram a um lugar chamado Getsêmani;
Ali chegados, disse Jesus
a seus discípulos: Assentai-vos aqui enquanto eu vou orar.
V.33 - E, levando consigo a Pedro, Tiago e
João,
começou a sentir-se tomado de pavor e de angústia.
V.34 - E lhes disse: A minha alma está
profundamente triste até à morte;
ficai aqui e vigiai.
V.35 - E, adiantando-se um pouco,
prostrou-se em terra;
e orava para que, se possível fosse, lhe fosse poupada aquela hora.
V.36 - E dizia: Aba, Pai, tudo te é
possível; passa de mim este cálice;
contudo, não seja o que eu quero, e, sim, o que tu queres.
V.37 - Voltando, achou-os dormindo; e disse a Pedro:
Simão, tu dormes? não pudeste vigiar nem uma hora?
V.38 - Vigiai e orai, para que não entreis
em tentação;
o espírito, na verdade, está pronto, mas a carne é fraca.
V.39 - Retirando-se de novo, orou repetindo
as mesmas palavras.
V.40 - Voltando, achou-os outra vez
dormindo, porque os seus olhos
estavam pesados; e não sabiam o que responder.
V.41 - E veio pela terceira vez e
disse-lhes: Ainda dormis e repousais! Basta!
chegou a hora; o Filho do homem está sendo entregue nas mãos dos pecadores.
V.42 - Levantai-vos, vamos! Eis que o
traidor se aproxima.
Jesus chegou ao
Getsêmani para uma batalha de oração. Deixando oito dos discípulos na entrada
do jardim, foi com os outros três, Pedro, Tiago e João, mais além e destes
também se distanciou mais um pouco, para orar particularmente. Aos mais íntimos
ele não escondeu o seu estado de alma caracterizado por tristeza, pavor e
angústia, e nem a imperiosa necessidade de orar. Enquanto ele se
encontrava sob forte tensão por causa do seu destino iminente, os discípulos,
inconscientes do que se passava ao seu redor, sentiam-se à vontade, em grande
medida, por estarem ao lado do Mestre. Nesta passagem pode-se notar de maneira
muito impressiva o caráter humano da situação em que transcorreram os fatos,
como Jesus a reconheceu assim, e como ele mesmo se viu envolvido nela. Nada era
mais correto do que buscar as forças do Pai para vencer a batalha que se
iniciava nesta hora. Os três discípulos que representavam todos os outros
especialmente Pedro, tão considerado, não podiam vigiar enquanto o inimigo
rondava e operava, porque estavam vencidos pela carne e dormiam!
A intensidade da
agonia de Jesus é mais visível aqui do que a intensidade de qualquer outro sentimento seu em qualquer
outra parte dos Evangelhos, como se pode avaliar pelas expressões: “começou a sentir-se tomado de pavor e de
angústia” e “A minha alma está profundamente triste até
à morte”, informações que nos
induzem a pensar nos fatos, mais por via emocional do que por via intelectual.
O pedido de Jesus ao Pai para que lhe poupasse aquela hora, ou que passasse
dele aquele cálice deve levar-nos à meditação sobre o tipo de sofrimento que
ele enfrentava, antes de pensar numa possível fraqueza sua. A morte ou os
sofrimentos físicos não o assustavam, mas ao lado destes estava, acima de tudo,
o sofrimento moral e espiritual. Ele estava ciente da sua vergonhosa condenação
por causa dos nossos pecados.
A conseqüência
imediata disto foi a separação necessária que sentiu de Deus, quando os assumiu
na cruz da maldição. Se estes sofrimentos não foram reais na obra de Jesus,
como qualificar a redenção? Como teria sido aperfeiçoado o Autor da nossa
salvação? É
certo que ele passou por tais sofrimentos, como testemunham as Escrituras: “Porque convinha que aquele, por cuja causa
e por quem todas as cousas existem, conduzindo muitos filhos à glória,
aperfeiçoasse por meio de sofrimentos o Autor da salvação deles” (Hebreus 2:10). Mas o pavor, a angústia e a
tristeza não podiam prevalecer, perturbando a sua mente. Então ele se dirige ao
Pai com forte clamor, submetendo-se à sua vontade, e foi ouvido. Assim Deus
pode cumprir em Jesus todo o seu propósito, como está escrito: “Ele, Jesus, nos dias da sua carne, tendo
oferecido, com forte clamor e lágrimas, orações e súplicas a quem o podia
livrar da morte, e tendo sido ouvido por causa da sua piedade, embora sendo
Filho, aprendeu a obediência pelas cousas que sofreu e, tendo sido
aperfeiçoado, tornou-se o Autor da salvação eterna para todos os que lhe
obedecem,...” (Hebreus 5:7-9).
É com ousadia e serenidade
que ele enfrenta os próximos sofrimentos até à cruz. A disposição com que ele
chega pela terceira vez aos discípulos que dormem é também impressionante, pois
ele diz: “Basta! chegou a hora; o Filho do homem está sendo
entregue nas mãos dos pecadores. Levantai-vos, vamos! Eis que o traidor se
aproxima”.
V.43 - E logo, falava ele ainda, quando
chegou Judas, um dos doze,
e com ele, vinda da parte dos principais sacerdotes, escribas
e anciãos, uma turba com espadas
e cacetes.
V.44 - Ora, o traidor tinha-lhes dado esta
senha: Aquele a quem eu beijar,
é esse; prendei-o e levai-o com segurança.
V.45 - E, logo que chegou, aproximando-se,
disse-lhe: Mestre. E o beijou.
V.46 - Então lhe deitaram as mãos e o
prenderam.
V.47 - Nisto, um dos circunstantes, sacando
da espada,
feriu o servo do sumo sacerdote e cortou-lhe a orelha.
V.48- Disse-lhes Jesus: Saístes com espadas
e cacetes para prender-me,
como a um salteador?
V.49- Todos os dias eu estava convosco no
templo, ensinando, e não
me prendestes; contudo é para que se cumpram as Escrituras.
V.50- Então, deixando-o, todos fugiram.
V.51- Seguia-o um jovem coberto unicamente
com um lençol,
e lançaram-lhe a mão.
V.52- Mas ele, largando o lençol, fugiu
desnudo.
Esta narrativa da
prisão de Jesus dentro dos acontecimentos finais do Evangelho de Marcos vem
finalizar a longa preparação feita desde o início do seu ministério pelos
principais sacerdotes, escribas e fariseus com fim de apanhá-lo. O capítulo 14 acrescenta aos fatos a
participação de Judas Iscariotes. Lucas deixa claro que o traidor conduziu
também os principais sacerdotes, capitães do Templo e anciãos ao local dos
acontecimentos (Lucas 22:52-53). A chegada de Judas com a turba armada de
espadas e cacetes aproximando-se na escuridão por entre os troncos das
oliveiras marca o momento mais desagradável de toda a história contada nos
Evangelhos.
É que neste instante
consuma-se a traição disfarçada sob a máscara de um beijo, o próprio gesto
santo que simbolizava o amor e o bom relacionamento entre discípulos e mestres.
Agora, porém, o discípulo rebelde de caráter perverso abusa dele para a sua
própria condenação. Ao mesmo tempo concretiza-se o intento dos inimigos, quando
hostes malignas atacam com uma falsa impressão de vantagem do reino das trevas
sobre o reino da luz. Na expressão do próprio Senhor Jesus registrada por Lucas
neste episódio, é a hora dos inimigos e do poder das trevas (cf. Lucas 22:53).
Os principais
sacerdotes, escribas e anciãos eram as três classes de pessoas que compunham o
Sinédrio que era o supremo tribunal dos judeus. Apesar do domínio romano a que
a nação estava submetida, esta corte
conservava alguns direitos e a obrigação de manter certo policiamento em
Jerusalém. Em algumas épocas o seu controle se estendia também sobre as
sinagogas do exterior, como se pode notar no caso de Saulo que foi a Damasco
com autorização do Sumo Sacerdote a fim de prender judeus cristãos e de levá-los
a Jerusalém (cf. Atos 9:1-2).
A descrição feita por
Marcos deste episódio, apesar de sucinta, é vívida e reflete o terror difundido
pela turba excitada, munida de armas parceiras da violência, desejosa de ver
correr sangue, e engrossada por populares curiosos que se foram incluindo pelo
caminho. Tudo isto contrasta com a serenidade de Jesus demonstrada por estas
palavras que Lucas afirma ter ele dirigido aos principais sacerdotes, capitães
do Templo e anciãos que ali se encontravam: “Saístes com espadas e cacetes como para deter um salteador?
Diariamente, estando eu convosco no templo, não pusestes as mãos sobre mim”
(cf. Lucas 22:52-53). E
Marcos acrescenta: “...contudo, é
para que se cumpram as Escrituras”. A
que parte das Escrituras Jesus se refere, nenhum dos Evangelhos esclarece, mas
o capítulo 53 de Isaías tem muito a ver com este episódio. Não se deve
confundir a serenidade de Jesus com qualquer reflexo de temor diante de
situação. Ele não assumiu aqui absolutamente nenhuma atitude passiva. João relata
que com simples palavras ele derrubou toda aquela legião, quando se identificou
diante deles, dizendo: “Sou eu”, expressão que , no Hebraico tem o mesmo valor
que “Jeová”. Eles o temeram, recuaram e caíram por terra, provavelmente em
atitude de adoração (João 18:6).
Mesmo nesta hora de
intenso nervosismo e agitação por parte dos outros, foi Jesus quem conduziu os
acontecimentos. Começando por receber Judas com a nobreza própria de um Mestre
divino, aceitando-lhe o beijo e chamando-lhe “amigo”, segundo Mateus e Lucas.
Em seguida, censurando a atitude irrefletida de Pedro, advertindo-o sobre a
severidade de Deus contra os violentos (Mateus 26:52). Depois curou a orelha de
Malco, o servo do Sumo Sacerdote ferido por Pedro, e ainda ordenou a liberação
dos discípulos que já estavam mesmo prontos para fugir, com medo de enfrentar
idêntica sorte que o Mestre. E nisto Jesus via calmamente o cumprimento das
suas previsões, quando os preveniu,
dizendo: “Todos vós vos
escandalizareis, porque está escrito: Ferirei o pastor e as ovelhas ficarão
dispersas”.
O comportamento dos
discípulos estava bem de acordo com o seu desenvolvimento espiritual: eram
imaturos e dependentes da natureza humana. Apesar de terem protestado
solidariedade ao Mestre até à morte,
agora capitulavam diante das dificuldades. E a violência ainda tinha lugar nas
suas atitudes em momentos de excitação emocional, como no presente. Por isso, o
porte de espadas entre eles só podia justificar-se por motivos verdadeiros,
como de utilidade prática ou para cumprir uma profecia.
Lucas esclarece no seu Evangelho, quando Jesus
pergunta: “...Quando vos mandei
sem bolsa, sem alforje e sem sandália, faltou-vos porventura alguma cousa?
Nada, disseram eles. Então lhes disse: Agora, porém, quem tem bolsa , tome-a,
como também o alforje; e o que não tem espada, venda a sua capa e compre uma.
Pois vos digo que importa que se cumpra em mim o que está escrito: Ele foi
contado com os malfeitores. Porque o que a mim se refere está sendo cumprido.
Então lhe disseram: Senhor, eis aqui duas espadas. Respondeu-lhes: Basta”
(Lucas 22:35-38).
Afinal, a quem
pertenciam as duas espadas? Tiago e João eram fortes candidatos a proprietários
delas, porque em outras ocasiões demonstraram ser violentos. Simão, o zelote,
também era candidato provável, porque pertencia a um partido revolucionário
extremista. De Pedro não é necessário dizer mais nada depois daquele golpe
inadvertido, em que usou de muita habilidade, ou acertou no escuro (cf. João
18:10).
Comparando os relatos
paralelos deste episódio nos quatro Evangelhos e meditando sobre os fatos
ocorridos, fica evidente o quanto Jesus nos pode ensinar, mesmo em momentos os
mais difíceis como este. Há duas verdades que saltam à vista imediatamente.
Trata-se de recursos humanos que os discípulos de Cristo nunca devem usar.
Primeiro, a violência contra outra pessoa, como Pedro fez. Segundo, a
humilhante atitude de fuga diante das dificuldades, abandonando os ideais da fé
cristã. Mas há também dois fatos curiosos a serem notados: Um é que não aparece
o nome de Pedro nos três primeiros Evangelhos, como autor do golpe de espada
que feriu o servo do Sumo Sacerdote. Só João é quem o identifica, mais de
cinqüenta anos após esta ocorrência, e mais de vinte anos após terem sido
escritos os outros Evangelhos. Isto deve ter acontecido por motivo de
segurança a favor de Pedro. O outro fato curioso refere-se ao jovem que
acompanhava os acontecimentos, envolto em um lençol. Este adolescente deve ter
sido o próprio João Marcos, escritor deste Evangelho. É possível que ele tenha
sido despertado do sono com a notícia da prisão de Jesus, e a sua preocupação e
falta de experiência levaram-no a sair tão despreparado para uma aventura tão
arriscada. De fato ele acabou entrando em apuros. Mas a sua iniciativa demonstra
coragem, e a sua preocupação demonstra amor pelo Mestre. Se este jovem não era
João Marcos, fica difícil explicar o motivo da inclusão do incidente na
narrativa deste Evangelho, visto que os outros não fazem menção dele.
V.53 - E levaram Jesus ao sumo sacerdote, e
reuniram-se
todos os principais sacerdotes, os anciãos e os escribas.
V.54 - Pedro seguira-o de longe até ao
interior do pátio do sumo sacerdote
e estava assentado entre os serventuários, aquentando-se ao fogo.
V.55 - E os principais sacerdotes e todo o
sinédrio procuravam algum testemunho
contra Jesus para o condenar à morte, e não achavam.
V.56 - Pois muitos testemunhavam falsamente
contra Jesus,
mas os depoimentos não eram coerentes.
V.57 - E, levantando-se alguns, testificavam
falsamente, dizendo:
V.58 - Nós o ouvimos declarar: Eu destruirei
este santuário edificado por
mãos humanas e em três dias construirei outro, não por mãos humanas.
V.59 - Nem assim o testemunho deles era
coerente.
V.60 - Levantando-se o sumo sacerdote, no
meio, perguntou a Jesus:
Nada respondes ao que estes depõem contra ti?
V.61 - Ele, porém, guardou silêncio e nada
respondeu. Tornou a interrogá-lo
o sumo sacerdote e lhe disse: És tu o Cristo, o Filho do Deus Bendito?
V.62 - Jesus respondeu: Eu sou, e vereis o
Filho do homem
assentado à direita do Todo-Poderoso e vindo com as nuvens do céu.
V.63 - Então o sumo sacerdote rasgou as suas
vestes e disse:
Que mais necessidade temos de
testemunhas?
V.64 - Ouvistes a blasfêmia; que vos parece?
E todos o julgaram réu de morte.
V.65 - Puseram-se alguns a cuspir nele,a
cobrir-lhe o rosto, a dar-lhe murros
e a dizer-lhe: Profetiza! E os guardas o tomaram a bofetadas.
De todas as partes do
capítulo 14, é este parágrafo que tem maior relação com o contexto mais
adiantado da narrativa. Parece de propósito que Marcos registra os
acontecimentos de tal maneira que é possível verificar, no presente episódio, o
cumprimento de um grande número de predições de Jesus desde o capítulo 8, e
especialmente a partir do capítulo 10. Uma boa parte dos versos do presente
capítulo está diretamente relacionada com passagens anteriores e algumas
posteriores a elas. Depois da ceia no cenáculo, quando cantaram um hino e Jesus
saiu com os discípulos para o Monte das Oliveiras em direção ao Getsêmani, nós
pudemos acompanhá-lo respeitosamente nas suas aflições naquele jardim, e vimos
quando chegou o traidor com a turba armada e agitada e ainda com algumas
autoridades. E, prendendo-o, levaram-no, enquanto os discípulos fugiram, sendo
ele seguido por um jovem envolto unicamente em um lençol. Agora o Filho do
homem já está entregue nas mãos dos pecadores, cumprindo-se a profecia da
parábola dos lavradores maus que agarraram o herdeiro, mataram-no e o atiraram
fora da vinha, como veremos no capítulo 15.
Jesus foi levado ao
Sumo Sacerdote, mais precisamente à casa de Caifás, conforme o relato de
Mateus, mas, segundo o Evangelho de João ele passou primeiro pela casa de Anás,
Sumo Sacerdote deposto de suas funções, mas que ainda exercia grande influência
no Sinédrio. Ele interrogou Jesus e depois o enviou de mãos amarradas a Caifás
que era seu genro e o Sumo Sacerdote naquele ano (cf. Mateus 22:57; João
18:12-13,24). Foi na casa deste que se reuniu previamente o Sinédrio, para
tomar deliberações a respeito de Jesus. É evidente que a reunião já estava
sendo preparada desde que Judas saiu, já de noite, com a turba para prendê-lo.
O Sinédrio não podia tomar a decisão que tomou de condenar Jesus. Os seus
poderes não eram tão amplos sob o domínio do Império (cf. João 18:31b). Só
Pilatos, o governador romano, tinha autoridade para decretar a pena de morte.
E, como veremos depois, ele hesitou muito antes de tomar esta decisão contra
Jesus, e só o fez por coação das autoridades dos judeus e pela pressão da
multidão excitada pelos líderes (cf. Marcos 15:9-15; Lucas 23:1-2; João
19:12-16). A atuação do Sinédrio devia ser apenas de reunir provas e apresentar
a acusação, deixando que o julgamento fosse feito pelo governador.
Na casa de Caifás o
clima devia ser de muita agitação e expectativa, porque tudo estava sendo feito
de improviso e muita cousa estava em franca desobediência à lei dos judeus. Por
exemplo, era vedada a reunião do Sinédrio durante a noite e no período das
grandes festas. Mas eles haviam formado ali um grande tribunal de improviso. A
rigor, para ser válida, a reunião legal havia de realizar-se no seu recinto
oficial chamado “Pedra Lavrada”. Os que constituíam o tribunal eram setenta e
uma pessoas, sendo muitos deles, fariseus.
Quanto às
qualificações, alguns eram escribas ou doutores da Lei. Outros eram anciãos,
idosos e respeitáveis, como os nossos senadores. E ainda os principais
sacerdotes que naquela época pertenciam, sem exceção, à seita dos saduceus. O
presidente era o Sumo Sacerdote Caifás.
Além das
irregularidades que mencionamos, acresce o fato de que não havia nenhum motivo
de acusação contra Jesus, pois não se apresentava nenhuma testemunha
verdadeira. E quando apareciam algumas falsas, depondo dolosamente, o
depoimento delas não era coerente. Só isto já era motivo para anular todo o
julgamento. Mas Jesus permanecia em silêncio, sem nenhuma contestação. E o sumo
Sacerdote, para adiantar o processo, fez uma pergunta a Jesus com a intenção de
incriminá-lo, forçando-o a responder sob juramento, se ele era o Cristo, o
Filho de Deus (cf. Mateus 26:63). Era proibido fazer ao réu uma pergunta como
esta que podia trazer da sua própria boca a condenação. Mas Jesus não tinha
motivo para negar esta verdade, e respondeu afirmativamente, acrescentando
palavras que falavam da sua vitória como Messias. Foi isto que tomaram como
motivo para ditar a sua sentença de morte. Outra arbitrariedade do Sinédrio foi
determinar a pena no ato do julgamento e forçar a situação para que a sentença
fosse cumprida o quanto antes, quando era necessário oferecer ao réu o prazo
legal, proporcionando-lhe a oportunidade de defesa, na esperança de que o tribunal
mudasse a decisão e anulasse a sentença. Um ato inaceitável do Sumo Sacerdote,
que mostra a sua falta de princípios e falta de observação dos preceitos da lei
de Deus foi rasgar as vestes, como num gesto teatral premeditado, ao ouvir o
depoimento de Jesus sobre a sua filiação divina. Este gesto próprio de gentios
era explicitamente condenado para o Sumo Sacerdote, ainda que num momento de
indignação (Levítico 21:10).
A partir de então
Jesus foi pronunciado réu de morte e passou a ser agredido pelos membros do
Sinédrio que comemoravam com alegria aquela vantagem alcançada pela força. É
como predisse o profeta: “Por
juízo opressor foi arrebatado...” (Isaías
53:8). Junto aos membros do Sinédrio estavam os estudantes pretendentes à
função de rabi, que podiam ajudar a defender o réu, porém, nunca acusá-lo.
Alguns passaram a cuspir nele, a vendar-lhe o rosto e a esmurrá-lo. Também o
insultavam dizendo: Se és profeta, adivinha quem te bateu. E os guardas davam
tapas em seu rosto.
Do ponto de vista
moral e legal o julgamento de Jesus foi uma farsa, além do que ele foi
submetido a inexplicáveis abusos e zombaria. Pedro trazia bem viva na memória a
lembrança do comportamento de Jesus, quando escreveu na sua primeira carta
estas palavras: “pois ele, quando
ultrajado , não revidava com ultraje, quando maltratado não fazia ameaças, mas
entregava-se àquele que julga retamente,” (1Pedro 2:23). Jesus tinha confiança no seu triunfo final, e a sua
atitude aqui se explica pelo que ele já havia afirmado anteriormente: “Por isso o Pai me ama, porque eu dou a
minha vida para a reassumir. Ninguém a tira de mim; pelo contrário, eu
espontaneamente a dou. Tenho autoridade para a entregar e também para reavê-la.
Este mandato recebi de meu Pai” (João
10:17-18). Ele tinha certeza de que Deus haveria de ressuscitá-lo.
V.66 - Estando Pedro em baixo no pátio, veio
uma das criadas do Sumo Sacerdote
V.67 - e, vendo a Pedro que se aquentava,
fixou-o e disse:
Tu também estavas com Jesus, o Nazareno.
V.68 - Mas ele o negou, dizendo: Não o
conheço, nem compreendo o que dizes.
E saiu para o alpendre. [E o galo cantou.]
V.69 - E a criada, vendo-o, tornou a dizer
aos circunstantes: Este é um deles.
V.70 - Mas ele outra vez o negou. E pouco
depois os que ali estavam disseram a
Pedro:
Verdadeiramente és um deles, porque também tu és galileu .
V.71 - Ele, porém, começou a praguejar e a
jurar:
Não conheço este homem de quem falais!
V.72 - E logo cantou o galo pela segunda
vez. Então Pedro se lembrou
da palavra que Jesus lhe dissera: Antes que duas vezes cante o galo,
tu me negarás três vezes. E caindo em si, desatou a chorar.
O julgamento de Jesus
teve como objetivo eliminá-lo da nação. Isto fez que ele fosse cortado da terra
dos viventes, cumprindo a profecia de Isaías 53:8.
Enquanto corria o
processo na casa de Caifás, onde os membros do Sinédrio sentados em círculo, acompanhados de jovens
assistentes, ouviam as testemunhas, e onde Jesus era interrogado pelo Sumo
Sacerdote, passava-se do lado de fora, no pátio, outra cena que Marcos descreve
neste parágrafo. Era quase de madrugada. O galo não havia cantado ainda. Pedro
estava lá fora e a noite era fria. Os oficiais e os servos do Sumo Sacerdote,
sentados ao redor de uma fogueira, aquentavam-se ao fogo. Pedro estava entre
eles. Foi então que chegou uma das criadas, a que cuidava do portão, e olhou
firme para ele. João relata que havia falado com ela para levar Pedro para
dentro, pois ele vinha seguindo Jesus de longe e havia ficado do lado de fora
(João 18:15-16). Ela disse a Pedro: “Tu
também estavas com Jesus, o Nazareno”. Como ela o conhecia, não sabemos,
mas é possível que algum dia o tivesse visto em companhia de Jesus, a quem ela
chama de Nazareno, com desdém. Vendo que Pedro o negava, e com uma desculpa retirava-se
para o alpendre, então passou a denunciá-lo diante dos que estavam em redor,
afirmando que ele pertencia ao grupo de Jesus. E Pedro respondeu negando-o
novamente. Pouco mais tarde os que ali estavam também o acusaram,
reconhecendo-o como galileu por causa das suas vestes. Então ele o negou pela
terceira vez praguejando e jurando que não o conhecia. Porém não blasfemou e
nem praguejou contra o Mestre. Foi contra si mesmo que ele pronunciou palavras
imprecatórias, talvez como: “Raios me partam, se conheço este homem”.
É possível que algumas pessoas já tenham negado Jesus de alguma
forma, em situação mais fácil de superar do que aquela em que Pedro se
encontrava, sem todavia se aperceberem da gravidade do problema. Mas quando
alguém se coloca no lugar dele, forçosamente compreenderá todo o processo que o
levou àquela tragédia, sem ter a quem apelar, à medida que as etapas iam-se
sucedendo, uma após outra, sem possibilidade de retorno, até à sua queda final.
Começa pelo fato dele estar tão confiante na sua própria capacidade, a ponto de
desdenhar os outros discípulos, quando disse: “Ainda que todos se escandalizem, eu jamais”. Podemos entender que
ele fosse sincero e que tivesse pretensões verdadeiras. Mas logo começaram as
decepções e ele não se compenetrou da gravidade dos fatos, até que Jesus lançou
sobre ele aquele olhar. Anteriormente ele mostrou indisciplina sobre as
exigências da carne, quando adormeceu e não pode vigiar no Getsêmani, enquanto
Jesus orava. Logo depois fugiu amedrontado com os outros discípulos. Agora, há
pouco, ele estava seguindo Jesus de longe e, quando entrou no pátio, foi
disfarçar-se entre aqueles que eram inimigos. Depois de tudo isso, como evitar
a tragédia? Os caminhos já estavam preparados e o desfecho seguiu-se como
lógico e necessário. Nas palavras de Alan Cole, “a batalha contra a tentação na casa do Sumo
Sacerdote tinha sido perdida muito tempo antes, pois o tempo propício para o
cristão lutar contra a tentação é antes de entrar nela”.
Olhando por este prisma, só é possível fazer concessões a Pedro
com base na natureza humana, como alguns querem condescender até com Judas. Mas
quando Pedro se arrependeu e chorou amargamente, ele não foi absolutamente
indulgente consigo mesmo. Pelo contrário, confessa ainda trinta anos depois, quando
foi escrito este Evangelho, a atrocidade do seu pecado e a riqueza da graça de
Deus que o reconduziu à comunhão com o Mestre. Compreender a fragilidade humana
e a facilidade da queda não é tão importante quanto compreender a natureza da
queda.
Com relação a Pedro qual deve ser a nossa atitude? Tomemos por base a atitude de Jesus. Ele
recebeu carinhosamente as hipotecas imaturas de fidelidade e de solidariedade
até à morte daquele discípulo e alertou-o com uma profecia bucólica de que
aquelas palavras careciam de garantia. E depois de tudo haver acontecido, ele
mesmo tomou a iniciativa da restauração de Pedro, mandando-lhe o recado, após a
ressurreição, para comparecer ao encontro marcado na Galiléia. Nestas condições
não convém censurar Pedro pelo erro em que ele incorreu, mesmo porque muitos
podem cometer a mesma falha em situação menos embaraçosa. Compreendendo a
fragilidade humana e a facilidade de ceder a certas tentações na fase de
imaturidade, devemos compreender paralelamente a necessidade de redenção, o
amor de Cristo e a sua disposição de livrar-nos da condenação do pecado. Pois
enquanto Pedro conseguiu livrar-se facilmente do sofrimento negando Jesus lá
fora no pátio, o Filho de Deus estava sendo condenado por dizer a verdade, lá
dentro da casa de Caifás. Logo em seguida, porém, o seu olhar sério, mas
misericordioso, fez com que Pedro retornasse ao bom senso.
Então o galo cantou pela segunda vez.