ANÁLISE DO TEXTO CAPÍTULO 1
V.1 – Tiago, servo de Deus e do Senhor Jesus Cristo, às doze tribos que se
encontram na Dispersão, saudações.
No estudo introdutório já vimos muitas cousas a respeito do autor da carta e dos destinatários. Por isso vamos acrescentar apenas mais algumas ideias que podemos descobrir no próprio texto, quando analisamos este versículo.
“Servo de Deus e do Senhor Jesus Cristo” é a expressão que o autor usa para identificar-se aos destinatários. “Servo” é a tradução da palavra “doulos” do Grego, que significa mais exatamente, escravo. Com exceção de Judas, Tiago é o único escritor do novo testamento que usa simplesmente esta palavra, para descrê-se a si próprio. Paulo, por exemplo, emprega uma expressão combinada “servo e apóstolo” em Romanos 1:1 e Filipenses 1:1 (comparar com Marcos 9:35; 10:44,45).
Apresentar-se como “escravo” tem várias implicações:
a) Obediência: visto que o escravo é propriedade integral do seu senhor (inclusive a própria vida) ele reconhece não ter direitos pessoais e não ter outra alternativa a escolher, que não seja executar a ordem do seu senhor (Lucas 6:46).
b) Humildade: o escravo aceita a condição de inteira submissão ao seu senhor. Isto significa uma adesão voluntária de si mesmo a Ele.
c) Fidelidade: no cumprimento do seu dever, o escravo não pensa em procurar vantagens pessoais, mas cuida unicamente dos interesses e negócios do seu senhor. Os seus próprios interesses ficam para trás a fim de servir única, exclusiva e fielmente ao seu senhor.
Esta descrição das circunstancias de ser escravo é bastante significativa, quando pensamos que um homem como Tiago, que gozava de elevado prestígio entre os judeus, coloca-se como exemplo de submissão incondicional ao Senhor Jesus Cristo, diante dos seus compatriotas que, ao que se depreende do teor da carta, vinham negligenciando a obediência ao Evangelho na sua vida diária. Ele demonstra reconhecer em Cristo, a mesma autoridade de Deus. Mas Tiago também não reclama esta condição de escravo para si mesmo, sem o merecido orgulho. Os grandes heróis da fé no Velho Testamento são chamados “servos de Deus” ou “escravos de Deus” (Números 14:24; Deuteronômio 9:27; Josué 2:8; I Reis 8:53; Jó 1:8; Isaias 20:3; Jeremias 7:25; Daniel 9:1; Amós 3:7; Zacarias 1:6; Malaquias 4:4). Este fato era do conhecimento de todo judeu religioso que tinha contato com o Velho Testamento. Agora, Tiago mostra a sua condição presente: “escravo de Deus e do Senhor Jesus Cristo”. Esta deve ser também a aspiração de todo cristão verdadeiro. Ser escravo de Deus e do Senhor Jesus Cristo é melhor do que ser patrão de todos os homens.
Quanto às “doze tribos que se encontram na Dispersão”, vamos lembrar primeiramente que esta é uma forma de Tiago dirigir-se a todos os judeus a que a carta se destinava. O vocábulo “Dispersão” é tradução da palavra grega “Diáspora”. Este termo era tão conhecido a ponto de ser usado na linguagem técnica, para significar os judeus que viviam fora de Israel. A palavra “Dispersão”, aparece em nossos Bíblias com letra maiúscula e a palavra “Diáspora”, pode ser encontrada em nossos dicionários embora, às vezes, com sentido não exatamente equivalente ao da carta de Tiago.
A Dispersão foi um grande fator positivo na difusão do cristianismo. Vivendo em toda parte do mundo daquela época, os judeus organizavam-se em colônias e criavam as suas sinagogas, em que se dedicavam ao estudo do Velho Testamento e de onde também partia o trabalho da formação de prosélitos entre os gentios da terra. Como se pode ver no estudo dos escritos de Paulo e do livro de Atos, essas sinagogas serviram como ponto de partida para a pregação do Evangelho pelos apóstolos e pelos pregadores cristão no mundo gentio.
Sabemos, do estudo da Bíblia, que houve várias ocasiões em que os israelitas foram dispersos. Em primeiro lugar, as dez tribos do Norte foram erradicadas da Samaria e levadas para a Assíria em cativeiro, de onde nunca mais voltaram (ano 722 A.C.), conferir Oséias 10:14-15; Isaias 20:5-6; II Reis 17:6,23; I Crônicas 5:26. Anteriormente, no reinado de Acabe (874-852 A.C.), muitos israelitas foram para Damasco onde se estabeleceram como comerciantes, montando lá seus bazares (II Reis 20:34).
Em segundo lugar, foram levadas as outras duas tribos do Sul, em 580 A.C. para o cativeiro da Babilônia por Nabucodonosor. Foi lá que se formou a colônia mais importante da Dispersão. Ali deu-se grande desenvolvimento social, cultural, econômico e religiosos dos judeus, a ponto de governarem a província da Mesopotâmia (Barkley – carta de Tiago). Lá foi produzido o famoso Talmud da Babilônia, um comentário da Lei judaica, em sessenta volumes.
A dispersão do Egito, que vinha desde a época de Jeremias, produziu a Septuaginta, tradução do Velho Testamento Hebraico para o Grego. Quando Pompeu tomou Jerusalém em 63 A.C., ele levou consigo muitos judeus cativos para Roma que, mais tarde, foram libertados e passaram a constituir uma colônia na capital do império.
Resumindo, havia judeus principalmente na Dispersão da Babilônia, Síria, Egito e Roma. Veja I Pedro 1:1, para completar este quadro.
V.1 – Tiago, servo de Deus e do Senhor Jesus Cristo, às doze tribos que se
encontram na Dispersão, saudações.
No cabeçalho da sua carta Tiago usa a expressão “chairen” para saudar os irmãos, expressão que transmite a ideia de “alegre e graciosa saudação”. Este era o cumprimento mais comum usado entre os gregos. Paulo usa a expressão “charis” e “eirene” que significa “graça e paz”.
V.2 – Meus irmãos, tende por motivo de toda alegria o passardes por várias provações,
V.3 – sabendo que a provação da vossa fé, uma vez confirmada, produz perseverança.
V.4 – Ora, a perseverança deve ter ação completa, para que sejais perfeitos e íntegros, em nada deficientes.
Nesta passagem deparamos, ao mesmo tempo, com uma advertência e uma exortação que a Bíblia oferece. Advertência, no sentido de que, na vida cristã, iremos sempre encontrar situações difíceis de resolver. Tais situações não significam apenas aqueles momentos em que passamos por crises de várias espécies (financeira, família, saúde, emprego), mas também e especialmente por aqueles momentos quando somos solicitados a abandonar a fé e a pecar – são as provações. Exortação, no significado genuíno da palavra, ou seja, conforto, ânimo, consolação. De fato, aqui aprendemos que a provação deve ser para nós, antes, motivo de alegria do que de desespero. A própria palavra alegria usada no V.2 é a mesma traduzida por “saudação” no V.1. O sentido é de saudação alegre ou jubilosa. O verdadeiro significado de provação não é difícil de compreender, pelo próprio sentido de “provar”. Significa testar, fazer passar por uma prova.
Não é sem compensação que o cristão passa por testes de provação. A finalidade é que ele se fortaleça, que se torne cada vez mais resistente, e possa vencer ao se deparar com a possibilidade de pecar. No V.13 lemos que não é Deus quem nos coloca nessa situação de prova. Mas Ele sabe fazer com que tais situações sejam proveitosas para nós. Aqui está o segredo: não pecar e não desistir da vida cristã, para que sejamos cada vez mais fortalecidos e possamos vencer, sempre que formos convidados ao fracasso (Ler I Pedro 4:12-19). Observar o verbo “provar” no V.12.
O V.3 revela o resultado positivo que alcançamos quando sabemos aproveitar os momentos de provação de toda espécie, seja perseguição, desprezo, martírio ou injuria (II Timóteo 3:12), até dos nossos próprios desejos de cobiça interior e das oportunidades, às vezes inesperadas, que nos são oferecidas do exterior. De fato, aproveitar corretamente essas situações significa patentear ou confirmar a nossa fé. O resultado disso será a perseverança (constância ou persistência). Assim, ultrapassando as provações sem pecar, temos a promessa da Palavra de Deus, que adquiriremos, cada vez mais, o desejo de progredir no sentido da perfeição e da integridade espiritual. Isto é o que lemos no V.4. Comparar com Efésios 6:13 e observar a armadura de Deus nos Vs. 14-18, na figura do soldado cristão.
No V.4 aprendemos também que a perseverança que era apenas um resultado ganho como recompensa de vencer a provação (V.3), passa, agora, a ser o verdadeiro elemento motor, aquilo que nos anima a avançar cada vez mais, para nos tornarmos perfeitos, isto é, maduros, experiente, aptos para o trabalho de Deus; íntegros, isto é, capacitados para vencer em todos os pontos envolvidos nessa luta, e em nada deficientes, isto é, sem nenhum ponto fraco, onde haja possibilidade de nossa falha.
V.5 – Se, porém, algum de vós necessita de sabedoria, peça-a a Deus, que a todos
dá liberalmente e nada lhes impropera; e ser-lhe-á concedida.
V.6 – Peça-a, porém, com fé, em nada duvidando; pois o que dúvida é semelhante
à onda do mar, impelida e agitada pelo vento.
V.7 – Não suponha esse homem que alcançará do Senhor alguma coisa;
V.8 – homem de ânimo dobre, inconstante em todos os seus caminhos.
O V.5 está intimamente relacionado com a passagem anterior. Deus é a fonte de sabedoria que nos ensina a maneira correta de enfrentar as adversidades da vida, para vence-las e para saber aplicar a experiência de maneira proveitosa, afim de que tenhamos perseverança. Em outras palavras, Deus é a única fonte da qual podemos receber sabedoria para ultrapassar a provação. Na nossa jornada, como forasteiros aqui, “a inteligência humana bem como a sabedoria do mundo não são, às vezes, somente inadequadas, mas também, definitivamente enganosas” (E. Ferguson – The Letter of James). Nestas circunstâncias, temos que recorrer a Deus porque tal sabedoria é uma dádiva Sua. Ele no-la concede de bom grado, sem exigir recompensa da nossa parte, e mesmo sem levar em consideração os nossos defeitos. Improperar, no V.5 significa criticar, afrontar, censurar com rudeza ou lançar enrosco.
A sabedoria aqui referida não é o simples conhecimento teórico de alguns fatos, o ato simples de tomar conhecimento de alguma cosa, mas a parte prática do conhecimento, isto é, a aplicação em nossa vida dos princípios aprendidos. Portanto, não se trata do conhecimento intelectual tão procurado pelos gregos. Tiago, como bom mestre da aplicação do cristianismo à vida diária – o que não causa estranheza se lembrarmos que ele cresceu ao lado de Cristo, e que era homem de severa formação religiosa judaica no sentido de obediência à Lei, estava apto a considera a sabedoria como algo a ser utilizado de maneira prática. Ropes define tal sabedoria como “a suprema e divina qualidade da alma, mediante a qual o homem conhece e pratica a justiça”. Comparar com Salomão, I Reis 3:7-10, e o caráter da sabedoria que ele pediu a Deus.
Os Vs. 6-8 instruem na maneira de pedir a Deus essa dádiva da sabedoria: devemos estar conscientes do desejo que Deus tem de no-la outorgar, como também do seu poder para isso. Mas não pode haver nós sombra de dúvida. Barkley expõe seu pensamento sobre esta questão nas seguintes palavras: “Se quisermos usar corretamente as experiências da vida para formar um caráter genuíno, temos que pedir sabedoria a Deus. E quando pedirmos teremos que lembrar a absoluta generosidade d’Ele, e ter a certeza de estarmos pedindo, na confiança de que receberemos aquilo que Deus sabe que é bom e justo que tenhamos”.
V.9 – O irmão, porém, de condição humilde glorie-se na sua dignidade,
V.10 – e o rico, na sua insignificância, porque ele passará como a flor da erva.
V.11 – Porque o sol se levanta com seu ardente calor, e a erva seca, e a sua flor
cai, e desaparece a formosura do seu aspecto; assim também se murchará o
rico em seus caminhos.
Nesta passagem encontramos um aspecto da aplicação pratica da sabedoria, que aprendemos nas passagens anteriores. O Evangelho é o nivelador dos homens diante de Deus. Na fraternidade e comunhão cristãs não há lugar para diferença de classe econômica ou social. Aqueles que tentam servir a Deus e às riquezas têm um traço característico: eles fazem distinção entre um homem humilde e um homem poderoso. O cristão, seja qual for a sua condição, deve usar a sabedoria de Deus para considerar-se a si mesmo e os outros membros da igreja no V.9 aprendemos que o irmão de condição humilde deve saber que ele tem dignidade diante de Deus. No V.10 aprendemos que o irmão rico deve saber que a riqueza em si não tem significado diante de Deus, e que o cristianismo lhe ensina um novo sentido de humildade. A palavra “insignificância” do V.10, e a expressão humilde do V.9 são a mesma no grego. Assim, pela sabedoria de Deus, tanto ricos como pobres podem conviver fraternalmente na igreja, com uma nova maneira de pensar tanto de si, como dos outros, em face das condições de cada um. No V.11 encontramos uma advertência para que não nos gloriemos nas riquezas. Os ricos não devem confiar no seu próprio poder. Antes, reconheçam a sua fraqueza, e confiem no poder de Deus. Só Ele pode conceder bens que não se extinguem. Comparar V.11 com Marcos 4:18-19. Em resumo, temos neste trecho, uma aplicação da sabedoria do Evangelho à vida social, a fim de que cada um se glorie na sua humildade, isto é, na sua submissão a Deus. Nos próximos capítulos Tiago volta a falar a respeito da riqueza, e também do tratamento aos ricos e pobres. Então teremos um quadro mais completo de ensinos sobre o assunto.
Como relacionar este parágrafo com o problema da provação? É que Tiago escreve para uma sociedade em que havia grandes diferenças sociais. Então ele adverte os pobres a não se deixarem tomar do desejo de ficar ricos, sabendo que eles têm sua dignidade assegurada em Cristo. Os ricos não devem deixar-se iludir pela sua posição na sociedade terrena, sabendo que a riqueza nada lhes pode assegurar. Antes, devem confiar em Deus e ser humildes diante d’Ele (I Timóteo 6:7-10).
V.12 - Bem-aventurado o homem que suporta, com perseverança, a provação;
porque, depois de ter sido aprovado, receberá a coroa da vida, a qual o
Senhor prometeu aos que o amam.
Com relação a este versículo, queremos notar apenas a expressão “coroa da vida” usada em Tiago, antes dos escritos de Pedro, Paulo e do Apocalipse. Era uma ideia já conhecida do Velho Testamento (Salmo 21:3; Provérbios 4:9; Zacarias 6:11-14). Como judeu, certamente Tiago não está pensando nas coroas de louro oferecidas pelos gregos aos vencedores das provas esportivas. De qualquer maneira, ele está se referindo à recompensa da vida eterna que o Senhor prometeu aos que O amam.
V.13 - Ninguém, ao ser tentado, diga: Sou tentado por Deus; porque Deus não
pode ser tentado pelo mal e ele mesmo a ninguém tenta.
V.14 - Ao contrário, cada um é tentado pela sua própria cobiça, quando está o
atrai e seduz.
V15 - Então, a cobiça, depois de haver concebido, dá à luz o pecado; e o pecado,
uma vez consumado, gera a morte.
Antes de entrar no estudo destes versículos vamos meditar um pouco a respeito da luta que se trava no íntimo de cada um de nós, diante de certas circunstâncias. É a luta entre o bem e o mal, expressa por meio de várias figuras: Paulo fala do conflito entre o homem interior e o homem exterior; ele fala também da luta entre o velho homem e o novo homem, além da luta do espírito que milita contra a carne e vice-versa. Esta dissenção no interior do homem já era conhecida há longo tempo pelos judeus. Muitos tentaram explicar qual era a origem dessas tendências, a tendência para o mal e a tendência para o bem. Nunca porém, se chegou a um resultado satisfatório. Alguns diziam que a tendência para o mal foi colocada no homem por Satanás, outros por anjos decaídos e outros afirmavam que o homem a colocou em si mesmo. Alguns rabinos chegaram a afirmar que a tendência para o mal foi colocada no homem pelo próprio Deus, ao lado da tendência para o bem.
Se isto fosse verdade chegaríamos a conclusões absurdas, como por exemplo, que Deus seria responsável pelo pecado. De qualquer modo, vemos que a culpa do pecado tendia, quase sempre a ser jogada sobre outros, sem que o homem assumisse a responsabilidade. Muitos judeus afirmavam ainda, naquela época de Tiago, que tentações vinham de Deus. Este era o modo de pensar da tradição rabínica, que influenciava o pensamento do povo em geral, mas a Bíblia mostrava já no Velho Testamento que o desejo do mal está no próprio homem (Genesis 4:7; Eclesiastes 7:29; Provérbios 10:10; 14:01; 19:03).
No V.13 vemos como a Bíblia ensina que Deus não é o criador das situações que nos põem à prova. O versículo explica também, por quê Deus não tenta a ninguém. É porque isto não faz parte do seu caráter.
No V.14 aprendemos que há dentro de nós o desejo mau de pecar. Não obstante, esse desejo pode ser reprimido com as forças que Deus põe à nossa disposição (I Coríntios 10:13). Alimentar o desejo de pecar é o mesmo que deixar-se atrair e seduzir pela própria cobiça. Reprimir o desejo de pecar é evitar que os nossos pensamentos divaguem por campos indesejáveis, é desviar nossos olhos de cenas impróprias, é evitar que nossos passos nos levem a lugares proibidos etc. Podemos ocupar-nos das coisas boas, de tal modo que os nossos corpos e as nossas mentes estejam sempre a serviço de Cristo.
O V.15 ensina que o desejo não reprimido, pelo contrário, alimentado, leva à consumação do ato de pecar. Finalmente, a consequência do pecado consumado é a morte. Percebemos, no final deste trecho, o contraste com o início do mesmo, quando comparamos a ideia da “morte espiritual” com a “coroa da vida” eterna. Embora não seja mencionado o nome de Satanás nessa passagem, sabemos que ele está por de trás desse processo, fomentando a cobiça e promovendo a sedução. Percebemos ainda que a origem do pecado está no desejo de satisfazer-se a si mesmo, deixando de lado a vontade de Deus.
V.16 – Não vos enganeis, meus amados irmãos.
V.17 – Toda boa dádiva e todo dom perfeito são lá do alto, descendo do Pai das
luzes, em quem não pode existir variação ou sombra de mudança.
V.18 – Pois, segundo o seu querer, ele nos gerou pela palavra da verdade, para que
fôssemos como que primícias das suas criaturas.
Bem ao contrário do que alguns ou muitos pensam, como sugere o V.13, o que podemos esperar de Deus são as “boas dádivas e os dons perfeitos”. Deus é, portanto a fonte suprema de todo o bem. Tiago afirma isto com carinho e ternura, utilizando a expressão “amados”, que aparece três vezes em toda a carta ao lado da palavra “irmãos”, usada sozinha outras doze vezes. Dádiva e dom têm ambos, o mesmo sentido de algo oferecido como presente. A expressão “toda boa... dom perfeito” parece poética, ou uma frase bem conhecida deles.
No V.17, ao descrever as características de Deus, são usadas duas expressões técnicas da astronomia: “variação” (parallagë – no Grego) e “sombra de mudança” (tropës – no Grego). Deus criou todas as cousas no céu e na Terra, com suas propriedades variáveis conforme a necessidade e ao propósito a que se destinam (o sol, a lua, as estrelas etc.). Mas, Ele mesmo é imutável e o Seu propósito para com o homem é inteiramente bom.
O V.18 revela que o Seu supremo desejo é que o homem seja gerado pela Sua Palavra, o Evangelho, para que ele se torne a cousa mais importante de toda a criação. Este pensamento faz-nos lembrar que toda a criação material de Deus, do universo todo e do próprio homem, não é para Ele tão importante quanto a criação do homem espiritual, feitura dele, por meio de Jesus Cristo (I Coríntios 15:45-49; Efésios 2:10).
V.19 – Sabeis estas coisas, meus amados irmãos. Todo homem, pois, seja pronto
para ouvir, tardio para falar, tardio para se irar.
V.20 – Porque a ira do homem não produz a justiça de Deus.
V.21 – Portanto, despojando-vos de toda impureza e acúmulo de maldade, acolhei,
com mansidão, a palavra em vós implantada, a qual é poderosa para salvar
a vossa alma.
Há uma conexão desta passagem com a anterior, mais diretamente com o V.18 porque os leitores sabiam que o novo nascimento pela Palavra devia conduzi-los a uma nova vida. Aqui estão algumas características dessa nova vida:
1 – Os renascidos devem obedecer a Deus, sendo “prontos para ouvir” Sua voz no Evangelho e Seus apelos com boa consciência.
2 – Devem ser “tardios para falar”, tanto no que respeita a dar apressadamente uma opinião arrogante sobre qualquer questão, como falar do Evangelho sem ter real conhecimento do assunto.
3 – Devem ser “tardios para irar-se”, porque a mente transtornada pela ira não pode receber a Palavra de Deus, pois, estará sempre distraída com pensamentos de ressentimento, raiva e vingança.
O V.20 tem certa dificuldade de interpretação, mas há duas ideias possíveis e fáceis:
1 – O homem que tem ira não pode agir de acordo com a justiça de Deus.
2 – O homem que tem ira não pode servir de exemplo da justiça de Deus, para aqueles que o veem do lado exterior, segundo a justiça do mundo.
Em ambos os casos encontramos um obstáculo para a difusão do Evangelho.
No V.21 vamos encontrar uma figura interessante para descrever a atitude do homem renascido, regenerado pela Palavra da Verdade, diante de certas características antigas suas. Ele deve “despojar-se”, literalmente “despir-se”, tirar a roupa suja para ficar livre de manchas da imundícia de que estava impregnada, isto é, das “impurezas e acúmulo de maldade”.
Ao mesmo tempo ele deve dar livre entrada à Palavra de Deus. De fato não há maior obstáculo para o crescimento espiritual, do que os vestígios que são trazidos pelo cristão, da sua vida anterior. Por outro lado, a Palavra de Deus recebida com mansidão e serenidade, sem arroubos de emoção, mas com reflexão e meditação, é poderosa para limpar a alma e salvá-la.
V.22 – Tornai-vos, pois, praticantes da palavra e não somente ouvintes,
enganando-vos a vós mesmos.
V.23 – Porque, se alguém é ouvinte da palavra e não praticante, assemelha-se ao
homem que contempla, num espelho, o seu rosto natural;
V.24 – pois a si mesmo se contempla, e se retira, e para logo se esquece de como
era a sua aparência.
Quanta verdade há na inspiração do Espírito Santo! Quanta sabedoria mostra esta passagem. Muitas pessoas passam longos anos da vida frequentando assiduamente os trabalhos da igreja, suportando os sermões e as leituras bíblicas e, às vezes lendo e estudando em casa, pensando que essas obras o tornam cristão. Essas pessoas fazem-se de esquecidas, porque sabem que não basta ler e ouvir. Se não aplicarem em suas vidas o que aprendem, estão-se enganando a si mesmas. Elas sabem que não acolhem a Palavra que é poderosa para salvar, enquanto ficam apenas ouvindo. Elas sabem como devem ser, mas não são como devem. O contato com a palavra revela a essas pessoas que o seu estado é tão incerto como é indefinida a imagem do seu rosto, quando olham num espelho embaçado (os espelhos antigos eram de metal polido e a imagem era vista muito precariamente). Mas, passado aquele momento, não se lembram mais da Palavra.
V.25 – Mas aquele que considera, atentamente, na lei perfeita, lei da liberdade, e
nela persevera, não sendo ouvinte negligente, mas operoso praticante, esse
será bem-aventurado no que realizar.
Aqui estamos diante de uma passagem que causava repulsa a Lutero, porque ele não gostava da palavra Lei. Também ele acusava Tiago de falar “tanto” das obras. A verdade é que os preceitos cristãos são preceitos éticos que precisam ser postos em prática na nossa vida a todo instante. É necessário fazer tudo o que o Mestre mandou.
O V.25 descreve maravilhosamente a Lei de Cristo de duas maneiras:
1 – Lei Perfeita:
a) – porque está de acordo com a vontade de Deus e foi dada por Ele, através de seu Filho, para que fosse obedecida.
b) – porque o princípio fundamental é o amor, o maior de todos os dons, amor do tipo que Deus tem pelos homens, de entregar o Seu próprio Filho por eles. Não há nisso nenhuma deficiência, e nada a ser corrigido.
c) – porque faz com que qualquer indivíduo sem objetivos na vida, que passe a obedecê-la, encontre o seu propósito dentro da humanidade, propósito para o qual Deus o criou, e que ele poderá cumprir completamente pela obediência.
2 – Lei da Liberdade:
Não há outra maneira de nos tornarmos livres, a não ser pela submissão à Lei de Deus, isto é, ao Evangelho de Cristo. Qualquer outro tipo de compromisso trará limitações. O compromisso com o pecado torna o homem escravo, sem esperanças. Mas a Verdade pode transportá-lo para o elevado plano celestial, onde ele encontrará paz completa (cf João 8:32).
O final do V.25 promete recompensa de Deus em todas as obras que realizarmos, desde que consideremos atentamente na Lei de Cristo.
V.26 – Se alguém supõe ser religioso, deixando de refrear a língua, antes,
enganando o próprio coração, a sua religião é vã.
V.27 – A religião pura e sem mácula, para com o nosso Deus e Pai, é esta: visitar
os órfãos e as viúvas nas suas tribulações e a si mesmo guardar-se
incontaminado do mundo.
Estes versículos podem ser mais bem compreendidos, se considerarmos que a palavra original traduzida por “religião” (threskéia, no Grego) significa também “culto” ou o ritual que acompanhava a adoração, no seu caráter exterior. Assim, podemos entender que Tiago chama a atenção para o fato de que prestamos melhor culto a Deus, quando auxiliamos os pobres e procuramos as virtudes pessoais, do que quando queremos expressar a nossa religiosidade por meio de aparência exterior de adoração. Esta é uma aplicação prática dos princípios da ética cristã na vida do crente.
No Velho Testamento os profetas pregaram muitas vezes contra a adoração mecânica do povo, que negligenciava os aspectos da verdadeira devoção (Zacarias 7:6-10; Miquéias 6:6-8). Este é um bom ponto para a igreja meditar sempre, no desemprenho dos seus trabalhos. Muitas vezes devemos parar e perguntar a nós mesmos: “Estamos adorando verdadeiramente a Deus, ou estamos apenas querendo aparentar que o adoramos?”